Por Edu Reginato
Nós temos três certezas exatas: estamos vivos, vamos morrer algum dia e temos algum medo.
O medo é um sentimento atávico no homem. Nossos ancestrais tinham medo do sol, da chuva, dos raios e trovões, dos ataques de predadores e, principalmente, medo da escuridão. Imagine que há pouco tempo a luz a gás (ou elétrica) era rara. A luz era gerada por meio de velas, archotes, lareiras ou lampiões. O mundo para além de sua janela era pura escuridão.
O medo do escuro é, em proporção menor, o medo do desconhecido. Imaginar o que pode vir desse desconhecido é a origem do medo. Desse modo, o que mais causa pavor é a sugestão do terror subliminado, a incursão do medo no pensamento.
As histórias de fantasmas e demônios do folclore japonês são repletas dessa sugestão. O sobrenatural espreita nas florestas, nos campos de juncos, em cavernas, nas antigas casas ou mosteiros. Os fantasmas e demônios transitam livremente por nós em suas esferas invisíveis, e vez ou outra somos interpelados por eles. A manifestação fantasmagórica, no entanto, não é sempre maléfica. Existem espíritos das florestas e das árvores, além de manifestações de animais, que representam boa sorte ou boa colheita. Algumas almas procuram ajudar os viajantes perdidos e os homens desenganados. Porém, é claro que existem também as manifestações atormentadas e os demônios perversos.
Origem e mitos
O folclore japonês foi muito influenciado pelo Xintoísmo e pelo Budismo, as duas religiões primárias do Japão. Geralmente envolve personagens e situações engraçadas ou bizarras, incluindo também uma variedade de divindades. Esse folclore é normalmente dividido segundo o tipo de suas narrativas. As histórias de fantasmas e demônios são conhecidas como Kaidan.
Muitas variações das lendas que ouvimos no Ocidente se devem à tradição oral trazida por viajantes vindos do Oriente e readaptadas ao gosto ocidental. O folclore do Japão também importou influências da literatura internacional. Algumas histórias da Índia serviram para modelar as histórias japonesas, provendo-lhes assuntos. Temas indianos foram modificados e adaptados de maneira a tocar a sensibilidade dos japoneses. As histórias de macacos, por exemplo, foram influenciadas tanto pelas poesias indianas em sânscrito, quanto pela literatura chinesa clássica. As histórias mencionadas nos contos budistas Jataka aparecem em uma forma modificada através da coleção japonesa de histórias populares. No século 19, contadores de histórias viajavam de cidade a cidade, freqüentemente valendo-se, além da oratória, também de ilustrações em um papel especial chamado kamishibai.
Espectros e demônios
O repórter grego Patrick Lafcadio Hearn (1850-1904) ficou conhecido por organizar uma antologia de contos de fadas e histórias sobrenaturais do folclore japonês intitulada Kwaidan (1904). Hearn viveu nos EUA, onde trabalhou como jornalista e viajou para o Japão, onde se radicaria no final do século 19, adotando o nome Koizumi Yakumo. O cineasta Kobayashi Masaki adaptou alguns desses contos da antologia homônima para compor sua obra prima: As Quatro Faces do Medo (Kwaidan, 1965). Trata-se de um dos mais belos filmes de horror japoneses já realizados. Uma obra exemplar, de plasticidade única que molda as histórias assustadoras com uma sensação etérea e fabular. Os filmes orientais têm uma relação bastante diferenciada com o tempo e, a partir disso, o filme de terror asiático tem um timing personalizado no intenso dos seus silêncios, na câmera com poucos movimentos, na música minimalista e na fotografia cheia de sombras.
O filme é dividido em quatro histórias curtas: O Cabelo Negro; A Dama da Neve; Hoichi, o sem-orelha; e Num copo de chá. As Quatro Faces do Medo é impressionante por simplesmente não investir no suspense: não há surpresas. Sua força reside na narrativa e no visual arrebatador. Kobayashi pintou à mão os cenários usados no filme que foi, em grande parte, rodado em estúdio — um hangar abandonado. Todo o som foi gravado na pós-produção, assegurando um maior controle do resultado final por parte do realizador. O diretor documenta as manifestações espectrais e demoníacas interferindo no destino de seus personagens. As maldições e desgraças resultantes da culpa ou da vingança são elementos moralizantes que remetem aos contos de fada ocidentais. O desejo sexual e a ambição também são fortes catalisadores de manifestações demoníacas.
Simbolismo e silêncio
O filme Contos da Lua Vaga (Ugetsu monogatari, 1953), de Kenji Mizoguchi, ambienta o cinema fantástico no Japão feudal do século 16. O elemento fantasmagórico típico do folclore japonês é inserido em um de seus segmentos dando ao filme uma enorme força dramática e poética. Mizoguchi faz uso de simbolismos próprios do teatro japonês para compor a história da princesa Wakasa, que leva Genjurô, o oleiro que sonha ser rico, para seu palácio e o seduz com um mundo de riqueza e prazeres. Os gestos calculados e teatrais de Wakasasão também uma forma de diferir a essência dessa personagem dos demais. É nesse segmento que o filme tem um dos seus momentos mais ricos. Genjurô vive seu sonho de riqueza e prazeres carnais com a princesa no Palácio Wakasa sem saber que está cada vez mais sendo tragado numa ilusão fantasmagórica que pode destruir sua razão e sua vida. O desfecho desse Conto é comovente. Quando Genjurô percebe sua real situação e seu encanto produzido pela alma atormentada de uma princesa é desfeito, ele percebe que por meses vagou sozinho, esfomeado e vestindo farrapos pelas ruínas de um antigo palácio. Mizoguchi, sabiamente, não explica nada. No Japão, o inaudito transita pelo cotidiano dos homens.
Florestas e minimalismo
O simbólico e inexplicável transita também pela interminável plantação de juncos do extraordinário filme Onibaba – A Mulher Demônio(Onibaba, 1964), de Kaneto Shindô. A história é originária de uma parábola budista do século 14 bastante representada no teatro Nô e que se tornou mundialmente conhecida pela máscara Hannia. A máscara representa um rosto de mulher que, em virtude do sofrimento por sentimentos como raiva, inveja e ciúme, adquire um aspecto demoníaco.
O clima de terror psicológico se constrói de maneira minimalista na composição do cenário (uma espectral floresta de juncos, o tempo todo açoitados pelo vento), na fotografia soturna e na composição de som (utilizando elementos eletroacústicos). Essa atmosfera gera uma sufocante sensação de estar em um universo à parte, onde os personagens se animalizaram em busca de sobrevivência e o alívio através do prazer sexual é o único alento ao medo da realidade. No filme de Shindô a manifestação demoníaca é, brilhantemente, invertida. Onibaba é a exteriorização do demônio interno, incubado. A mulher se torna demônio por meio de seus atos.
Releituras e novas mídias
As assustadoras Obakebanashis foram redescobertas na retomada do cinema de horror contemporâneo japonês. Os filmes O Chamado(Ringu, 1998) de Hideo Nakata; O Grito (Juon, 2003), de Takashi Shimizu, e Uma chamada Perdida (Chakushin ari, 2003), de Takashi Miike, são releituras das lendas folclóricas japonesas adaptadas para os novos tempos, onde a manifestação fantasmagórica se dá por intermédio de mídias eletrônicas (fita de vídeo-cassete, telefone, celular, televisão).
Em um país proeminente em tecnologia, onde a comunicação presencial é cada vez mais rara e as mídias cada vez mais avançadas, a fita-cassete de vídeo é como os antigos palácios mal-assombrados das lendas medievais: um objeto que pode carregar uma maldição ou servir de canal para a conjuração demoníaca. No Japão, não importa onde ou o quê, tudo pode ser assombrado – geralmente pela alma de uma garota de longos cabelos negros que escondem seu rosto.
Sentir medo, afora a sensação incômoda, é também a capacidade de maravilhar-se ou ser encantado pelo desconhecido. No escuro, podemos encontrar a luz, podemos amar, podemos sonhar, podemos secretar os nossos desejos, verdades ou mentiras. Podemos brincar de esconde-esconde sem saber quem iremos encontrar. O medo é necessário para persistirmos. Sem medo não descobriríamos o fogo, o amor, a perda, a dor, a felicidade e a morte. O folclore japonês e seu cinema fantástico são as manifestações de respeito ao medo, ao desconhecido, às coisas intangíveis que, na melhor das hipóteses, sempre estarão em uma sala escura, prontas para serem descobertas.
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