A Faca e o Fogo
I
É sempre com respeito, e algum remorso, que abordo a obra de Herberto Helder. Comentá-la é restringir o seu alcance, por outro lado o comentário pode, para alguns leitores, alargar o sentido, se acaso acharam hermético o seu imaginário.
É imenso, como não podia deixar de ser, o universo cultural de Herberto Helder: dos antigos mitos, rituais, magias que foram ao seu encontro - a nossa geração, a dos anos sessenta, é feita de devoradores de livros - até às práticas mais modernistas, entre as quais o surrealismo e a escrita automática se inscrevem , renovando-as, abrindo a palavra poética à imensidão das vagas do inconsciente.
Herberto ora transmite ora oculta, no seu dizer,o impulso que o move. Sobre ou sob imagens poderosas, arquétipos e mitos fundadores. Não é por acaso que ao lermos e relermos a sua poesia de cada vez algo de novo se encontra, que nos perturba e seduz.
Acontece de novo, com este novo livro, A Faca Não Corta o Fogo, de que já me ocupei, para o "lançar", a meu modo, nestes blogues.
Permanente é a interpelação da Mãe, a interpelação da Mulher, do seu corpo, do seu sangue, da energia de que ela e só ela é portadora, e nos conduz ao primordial impulso da palavra, do Verbo que exige ser dito para que não definhe e morra.
Eu gosto de regressar, como ele faz, neste livro, ao mundo maravilhoso de A Colher Na Boca, o primeiro que li, há tantos anos, andando pela Editora Ática:
No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva.Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras.
Imagens da mulher, da água (da chuva) e do fogo (das candeias) dando a pressentir uma espécie de fusão alquímica dos elementos que serão a base estruturante do poema.
A mulher hierática, como a deusa Ishtar, Grande Mãe primordial, inicia e devora, consome, o filho que é ao mesmo tempo amante.
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
O amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que ela levitam.
Caminha-se para a iniciação, não tanto ao real que a suporta, como ao imaginário subtil, do mundo interior, que sublimará pela palavra o mundo terreal, elementar, quotidiano ( a mesa, as chávenas, os garfos em que a mãe vai mexendo).
Depois da água e do fogo surgirá a terra, com as flores:
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
E estas flores são já as de Perséphone, outra variante do mito primordial.
Filha de Zeus e Deméter ou, noutra variante, de Zeus e de Styx ( a ninfa do rio dos Infernos) passa o seu tempo durante três estações na terra e uma estação no inferno. Simboliza o renascer da vida, na Primavera, aguardado como esperança e sinal de perpétua renovação. Amante de Adónis, levá-lo-á aos infernos consigo, quando parte.
O interessante é descobrir a dupla face do mito: morte e renascimento, treva e luz, figurações também da condição humana no universo criado.
As mães, entenda-se aqui o Feminino, o Eterno Femino, é condutor, como em Goethe e tantos outros poetas.
As mães são a mais alta coisa
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos...
II
A imagem do fogo, como elemento de fusão e de sublimação, é permanente em Herberto Helder, e de novo dá o tom ao seu novo livro, nos inéditos escolhidos que intitulou de A Faca não corta o Fogo.
Poderemos recordar Bachelard (La Psychanalise du Feu) e ver com ele a dimensão do "fogo sexualizado", e do "fogo idealizado", sublimado em luz pura de pura transformação.
Definir é limitar, e o poema escapa a qualquer tentativa de limitação, o que torna humildes quaisquer comentadores, no grupo dos quais me incluo. Não pretendo limtar o âmbito do poema, mas sim e apenas viajar à minha medida pelo poema dentro, seguindo pistas que me surgem, como poderiam surgir outras.
Uma das mais interessantes que me ocorreu foi a de ver na Faca a Espada dos alquimistas, fazendo precisamente o seu trabalho de fogo. A espada corta e sublima, e por outro lado ela própria é "temperada" no fogo. O trabalho secreto do adepto, do ferreiro, é dar forma à matéria difícil dos metais que vão do negro chumbo da vida ao ouro da imortalidade que os poetas celebram, ou porque a temem ou porque a desejam, ainda que inconscientemente.
A chama é vertical, mas pode ser suavizada no interior da lanterna, do candieiro que a aprisiona e contém.Torna-se chama do lar, íntima, permitindo o sonho, ou no calor da casa, da cama, a experiência do amor.
Encontramos em Michael Maier, conhecido médico e alquimista alemão do século XVII, uma bela gravura, da Atalanta Fugiens, que pode ajudar a entender o simbolismo da espada e do fogo, ou neste caso da faca e do fogo. A espada não corta o fogo, é sublimada por ele; o mesmo acontece à faca.
A dinâmica do simbolismo imaginal permite aproximar o fogo da Luz, e a espada do Espírito que por ela é inspirado e conduzido. Fala-se da Luz da Razão, mas pode igualmente falar-se da Luz da Iniciação, a tal vidência que é apanágio das Mães antigas e de seus filhos amados e amantes.Toda a iniciação passa por sacrifício, o que acontece na combustão do fogo íntimo do Verbo, do Poema de Herberto:
a vida inteira para fundar um poema,
a pulso,
um só, arterial, com abrasadura,
que ao dizê-lo os dentes firam a língua,
que o idioma se fira na boca inábil que o diga,
só quase pressentimento fonético,
filológico,
mas que atenção, paixão, alumiação
- e se me tocam na boca?
Está situada a aventura: é do Poema que se trata, sempre se tratou, da sua substância viva, ao mesmo tempo etérea e corporal, o poema pode doer e dói, no corpo como na alma.
E de novo somos empurrados para um fundo mítico próprio: o da natureza do Verbo criador, da primeira energia, a anímica, que na tradição da Kabala, por exemplo, é equiparada à Shekinah, a face magnânima de Deus, eterna como ele e feminina.Dos poemas ou do Poema de Herberto se pode dizer o que Bernardim Ribeiro disse da sua Menina e Moça : "o livro há-de ser do que vai escrito nele" . E mais ainda esta verdade se comprova neste caso de que estamos a tratar.
A Shekinah é definida por G.Scholem (A Kabala e a Mística Judaica) como "o momento Passivo-Feminino da Divindade":" Se quisermos começar por determiná-la dum modo muito geral, a Shekinah é a personificação e a hipostasiação da Habitação ou Presença de Deus no mundo". E adiante conclui, "o seu nome é feminino mas a sua natureza é masculina".(trad. port. ed.Dom Quixote).
Se tudo na obra de Herberto remete para a Palavra Dita,para umDizer da poesia feita experiência viva, em carne viva, em combustão que a água não apaga nem dissolve, antes ajuda a solidificar, também tudo remete para uma personificação, na Mulher, de uma sabedoria antiga, de cariz religioso, mítico, hermético e por isso difícil de explicar.
O Corpo da Palavra é como a Pedra alquímica: em ambos se reúnem opostos, se fundem contrários, se completam energias primordiais e pulsões emanadas de um fundo anímico comum, o inconsciente (a matriz dos arquétipos universais, como gosta de dizer Jung). Citando agora um alquimista francês do século XIX, de pseudónimo Sedir:
"Eros é um agente muito secreto, é aurifíco; por isso se esconde nos véus da Noite; Orfeu te ensinará a extrai-lo (ao ouro) de toda a matéria em putrefacção; deixa que primeiro este Saturno se transforme, por meio do fogo que forma os Metais nas entranhas da terra, numa Vénus filosófica...É por isso que o amor é uma beatitude". (Vénus Magique, contenant les Théories Secrètes et les Pratiques de la Science des Sexes, ed.Pierre Belfond).
Neste tratado se encontram todos os temas da panóplia alquímica, a geração do microcosmos, da Grande Obra, como análoga à macrocósmica,ou Criação do mundo por Deus; e ainda o mito do andrógino, transformado na Conjunção do macho e fêmea, a Virgem fecundada, o Fogo dos Sábios como filho de Vénus, etc.
Em A Faca não Corta o Fogo, no poema com que termina o livro, surge outro elemento muito caro ao poeta: "o animal intuitivo, de origem" : a pulsão que o move e no universo da palavra faz mover o mundo do poema, faz brilhar o "nome" do poeta, e no ar lança a interrogação:
onde?
fora? dentro?
no aparte,
no mais vidrado,
no avêsso,
no sistema demoroso do bicho interrompido na seda,
fibra lavrada sangrando,
uma qualquer arte intrépida por uma espécie de pilha eléctrica
como alma: plenitude,
através de um truque:
os dedos com uma, suponhamos, estrela que se entorna sobre a mesa,
poema trabalhado a energia lternativa,
a fervor e ofício,
enquanto a morte come onde pode a vida toda
...
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse : tinha paixão?
O forno, o fogo, a faca, a espada, o ovo (feminino-mãe, matriz primordial).
Se lermos o poema todo, como no Todo se funde esta Escritura mágica, sentiremos pela própria leitura, de preferência em voz alta, deixando bater o ritmo ( o pulsar do coração) que sim, tinha paixão, antiga como a que levou Deus a amar em Si-mesmo o Belo, o Bom ,o Verdadeiro - ainda que em toda a crueza.Da Obra nasce o tempo em que ela se constitui, nasce o destino, que um fio (pelas Parcas, ou pelas Mães) será um dia cortado:
arranca ao maço de linho o fio enxuto,
nascido assim, ali, na roca, o fio,
e que gire no fuso para dentro do que fica pronto,
e vá até ao fim o trabalho que brilha,
o toque transitivo,
que a luz se mova nas pupilas,
ese ficares cego é para veres tudo unido,
escuta então como te chamam pelo nome
daquilo que te cerca,
mas não acumules nada,
amaina o fio bravio quando irrompe
e,
pálpebras cerradas, sente como estremece tudo, o centripeto e o centrífugo,
e morre de ti mesmo
Extraído do Simbologia e Alquimia
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