terça-feira, agosto 14, 2012



Janus à espreita
Mário Sérgio Cortella

Na religião romana da Antiguidade, há um deus chamado Janus, sempre representado por uma cabeça com dois rostos opostos, de modo a olhar para a frente e para trás; essa divindade era considerada protetora dos começos, isto é, da hora inicial do dia e do primeiro mês do ano (Januarius), pois abria e fechava todas as coisas e guardava o passado (ano findante) e o futuro
(ano novo).

Para poder proteger inícios e términos vitais, o francês Marcel Proust publicou, nas primeiras décadas do século 20 (usando primeira pessoa e produzindo um monólogo interior em 16 volumes!), uma das mais importantes obras de toda a literatura: "Em Busca do Tempo Perdido". É provável
que o escritor quisesse viver no romance aquilo em que acreditava, ao afirmar que "certas recordações são como os amigos comuns: sabem fazer reconciliações".

Recordações! Olhar para trás e reconciliar-se com o futuro! É claro que o fundamental não é procurar o tempo perdido, mas, isto sim, aquilo que no tempo se perdeu e não deveria tê-lo feito. Lembramos
o que já se foi para orientar o desejo daquilo que deve vir. No entanto a maior parte das pessoas em nossa época vem-se preocupando mais com as metas (que são pontos de chegada) do que com os princípios (que são pontos de partida).

Quais deveriam ser, então, os nossos valores? Garantir a integridade da vida, promover a
sinceridade das relações interpessoais, realizar a lealdade fraterna e fortalecer a fidelidade ao solidário? Os valores são exatamente os princípios (os começos protegidos por Janus...) e constituem o amálgama que agrega e orienta as atitudes individuais para a efetivação das intenções
e finalidades de uma coletividade; valores são referências de conduta (grupal e pessoal) em torno das quais um coletivo compreende e legitima o exercício de suas atividades conjuntas; valores representam a possibilidade de convergência honesta dos propósitos usualmente dispersos na convivência multifacetada e, quando apropriados (tornados próprios) por cada um, diminuem o
risco de artificializar e retirar autenticidade dos contatos presentes no cotidiano.

Assim caminha a humanidade... Caminha em conjunto? Caminha camuflada e amedrontada? Caminha agora mais sozinha do que antes? Caminha em direção ao outro? Basta um exemplo a
bem recordar: há poucas décadas, independentemente do tamanho da cidade, quando alguém,
tarde da noite, saía a pé de algum lugar (trabalho, escola, igreja, clube etc) e caminhava só em direção ao próprio lar, ouvir passos de outra pessoa representava um certo alívio: Agora vou ter companhia! E os dois seguiam andando juntos... Hoje, quando, na mesma circunstância, são ouvidos ruídos humanos, já se pensa: meu Deus do céu, vem vindo alguém...
 
O que aconteceu? Que princípio foi violentado? Antes o outro era até um amparo; tínhamos medo, quando muito, de alma de outro mundo. De que se tem medo agora? Do outro, porque, em vez de
ser alguém que pode nos proteger, é eventual ameaça feroz !

No século anterior ao de Proust, o poeta inglês George Gordon Byron nos desafiava, dizendo que
"a recordação da felicidade já não é felicidade; a recordação da dor ainda é dor".
 
Por isso é preciso reviver o relato inserido no princípio da Bíblia judaico-cristã, no qual há um
trecho conhecido (e muito esquecido). Logo após a narrativa do primeiro assassinato e do consequente estilhaçamento original da fraternidade (a ser refeita), o Criador procura o criminoso, que, cinicamente, alega isenção.
"O Senhor disse a Caim: 'Onde está o teu irmão Abel?'
 'Não sei' _respondeu ele_ "Serei eu o guarda de meu irmão?'. "

Pergunta e resposta continuam ecoando nestes novos recomeços...
 

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