Mas se a nomeação não for unanimemente aprovada, o Grão-Mestre deve ser imediatamente escolhido através do voto. Todos os Mestres e Vigilantes escreverão o nome de seu escolhido, bem assim como o Grão-Mestre. E o nome que o Grão-Mestre primeiro retirar, casual ou aleatoriamente, será o Grão-Mestre no ano seguinte. Se este estiver presente, deverá ser proclamado e saudado como acima indicado, e consequentemente empossado pelo último Grão-Mestre de acordo com o Costume.
Esta Regra XXXIV permite-nos perceber como o conceito de "escolha pelo voto" evoluiu desde o início do século XVIII até agora.
Relembremos que o século XVIII - muitas vezes referido pelo "século das Luzes", aquele em que triunfou o Iluminismo - foi um tempo de transição da aquisição do conhecimento pela via escolástica para a obtenção do saber pela via da Razão. Anteriormente, a "verdade" tinha origem divina e era revelada pelas Escrituras e pelos "doutores" que as interpretavam. Galileu necessitou, para evitar a tortura e, quiçá, a morte na fogueira, de abjurar a sua descoberta de que era a Terra que se movia em torno do Sol e não o contrário, como escolasticamente estava "estabelecido". Na esteira de Descartes e de Spinoza, de Immanuel Kant, de Rousseau, dos enciclopedistas e dos filósofos ingleses, a sociedade europeia recomeçou a caminhada que interrompera após a Antiguidade Clássica (e breve e localizadamente retomara no tempo do Al-Andaluz islâmico) no sentido da primazia da Razão e do triunfo da Ciência Experimental.
Este percurso teve inevitáveis reflexos na organização social. Com a primazia da Razão, decaiu o Direito Divino de governar em que se baseava a organização política monárquica, retomou-se a noção de Democracia, criada nas cidades-Estado gregas da Antiguidade, particularmente na brilhante Atenas de Sólon e Péricles e dos grandes pensadores Aristóteles, Sócrates e Platão - que a origem do Poder não era divina, mas residia no Povo.
Mas no início do século XVIII ainda o velho e o novo se digladiavam, se misturavam, mutuamente se influenciavam. Entre o direito divino de governar, o Poder "pela escolha de Deus", e o Poder originário do Povo muitas mentes se interrogavam, muitas inclinações se balançavam, muitos avanços e retrocessos existiam. Como em tudo na realidade na vida, não houve uma fronteira, um momento definido em que, como que por artes mágicas, o novo conceito substituísse o antigo. Ambos coexistiam, primeiro o antigo sobrepondo-se ao novo, depois havendo uma equivalência e, progressivamente, o novo ganhando vantagem e paulatinamente destronando o antigo - e neste processo, coexistindo, influenciando-se mutuamente, surgindo inesperados híbridos entre o antigo e o novo, como só a fantástica imaginação humana é capaz de produzir.
Esta Regra XXXIV precisamente constitui um desses híbridos!
Recorde-se, antes do mais, os antecedentes: (1) em reunião privada, os representantes das Lojas deliberavam sobre a continuidade do Grão-Mestre em funções, deliberação esta que tinha de assentar na unanimidade; (2) na hipótese afirmativa e ocorrendo aceitação do Grão-Mestre em funções, estava o assunto encerrado; (3) não havendo unanimidade quanto à continuidade do Grão-Mestre em funções ou não aceitando este a sua continuidade, o Grão-Mestre em funções nomeava, propunha, um sucessor; (4) sendo o proposto aprovado por unanimidade, ficava a questão resolvida; (5) não havendo aprovação unânime do proposto, então aplicava-se a Regra XXXIV.
E em que consiste a regra XXXIV? Na escolha do novo Grão-Mestre pelo voto. Aparentemente, a utilização do método democrático como hoje o concebemos. Mas, na realidade, não exatamente assim.
É que hoje concebemos a escolha pelo voto como a escolha resultante da maioria dos votos expressos, um critério objetivo, em que a aleatoriedade não tem lugar.
Mas o sistema indicado na regra XXXIV contém um elemento de decisiva aleatoriedade, algo perturbadora para as nossas conceções modernas: o escolhido não era o que tinha maior votos - era aquele que era sorteado de entre todos os votos expressos!
Se é verdade que se, num universo de, digamos, 100 votantes, 99 votarem em João e 1 em José, as probabilidades de ser sorteado como vencedor João é esmagadora, o certo é que pode suceder que seja o único e solitário voto em José que é, "casual ou aleatoriamente", o retirado. E se, dos 100, 60 tiverem escolhido João e 40 José, embora haja mais probabilidades de João ser o sorteado, são muito significativas as probabilidades de sair José...
No entanto, a Regra enfaticamente afirma que "o Grão-Mestre deve ser imediatamente escolhido através do voto"...
Este é um evidente produto híbrido das duas conceções então ainda em luta: o dirigente, o líder, aquele que exerce o Poder, resulta da decisão divina ou provém da escolha humana.
Os maçons do início do século XVIII não acreditavam já (ou não acreditavam maioritariamente) na conceção da designação por direito divino; mas, inclinando-se para a Modernidade, para a escolha pelo Povo, pelo universo de votantes, pela conceção democrática do Poder, ainda não estavam em condições de utilizar exclusivamente esta (ou ainda tinham no seu seio um número não negligenciável de seguidores do "pensamento antigo") e de deixar a escolha totalmente à decisão maioritária.
Daí a solução híbrida: cada um expressava a sua vontade, sendo expectável que a maioria das vontades expressas viesse a redundar na escolha; mas deixando intervir um decisivo elemento de aleatoriedade através do sorteio entre os votos expressos... A aleatoriedade introduzida correspondia, afinal, ao fator da intervenção divina: se Deus, o Grande Arquiteto do Universo, entendesse que a escolha da maioria dos votantes era errada e não deveria subsistir, então a sua Divina Vontade faria com que a Fortuna levasse a que fosse sorteado o nome daquele que deveria exercer a função!
Este curioso híbrido, esta engenhosa mistura entre a designação por direito divino e a escolha por decisão do universo de votantes, espelha que se estava numa fase de transição entre duas conceções civilizacionais da organização social. É um sistema curioso, engenhoso e que não encontrei em mais nenhum lado, em mais nenhuma instituição, em mais nenhum outro tempo. É uma solução que foi um típico produto de uma época concreta e das específicas condições existentes.
E, vista a cerca de trezentos anos de distância, tem a virtude de nos dar dois alertas: (1) a Maçonaria, prezando a Tradição, não se deve deixar envolver pelo Imobilismo; o que é antigo deve ser preservado, mas deve sê-lo na exata medida e com as alterações que se impuserem, em face da evolução da Sociedade, dos tempos, das conceções morais e sociais; (2) devemos sempre procurar estar em sintonia com o tempo em que estamos, atentos às evoluções, mas nem mantendo o Antigo só por manter, nem o trocando de ânimo leve pelo que se apresenta como novo, sem sabermos se é realmente novo e, sobretudo, se é acertado e adequado; o Antigo tanto pode apodrecer, como manter, preservar e aumentar de Qualidade; o Novo pode ser evolução - e deve então ser bem-vindo - como pode ser mera aparência desta mas real involução ou simples irrelevância - e nesse caso deve ser descartado e recusado; o Novo de hoje pode substituir o Antigo de ontem, pode fundir-se com o Antigo e transformá-lo ou, pura e simplesmente, pode não ter virtualidade em face do Antigo, experimentado e estabelecido.
Como em tudo na Vida, impõe-se usar o Bom Senso - uma Virtude que o Criador nos concedeu mas que cabe a nós Humanos efetivamente praticar e usar, sem receio, neste caso, de abusar!
Fonte:
Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 144.
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Espaço oportunizado para aquele cuja a mente é inquieta e busca ir mais longe no conhecimento sem reservas de qualquer natureza. M. Aesculapius
quinta-feira, janeiro 10, 2013
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