sábado, janeiro 26, 2013

DIALÉTICA DO SAGRADO – por André Dantas

Depois de tanto tempo sem atualizar o blog voltei, trazendo um texto muito bom e interessante de André Dantas que encontrei na Rubedo. Por ser um texto complexo e longo, vou colocar em duas partes pra ser apreciado sem pressa, vale a pena ler cada linha, eu gostei demais e recomendo.
” Todas as mitologias e religiões dividem o mundo em dois domínios opostos, o sagrado e o profano. Se em algumas mitologias a distinção entre o bem e o mal é inoperante, o mesmo não ocorre com aquela entre o mundo sagrado dos deuses e o mundo profano do homem, que não só determina a presença do sagrado numa cultura, como também a própria essência do sagrado e por isso também a do profano. Os dois domínios são distintos e muitas vezes hostis um ao outro, mas também fluem um no outro, visto que um pressupõe o outro. A oposição entre os dois coincide com a distinção entre o que é real e o que é irreal, entre o que “é” e o que “não é’, sendo por isso uma oposição ontológica. O sagrado é valoroso, sólido, real, enquanto o profano pertence ao domínio do não-ser e do irreal. Essa oposição entre ser (sagrado) e não-ser (profano) organiza todo o cosmos mítico-religioso tornando possível a cultura com seus ritos e mitos.
O mundo dos deuses opõe-se ao dos homens, pois o que é tido como sagrado isola-se escapando dos limites da experiência profana, realizando-se como negação do habitual e do comum. Isso ocorre porque para os antigos o espaço não é homogêneo e indiferente, apresentando rupturas, quebras, porções qualitativamente diferentes umas das outras. Há espaços sagrados, consistentes, significativos e há outros não consagrados, sem estruturas e por isso amorfos e inconsistentes. O sagrado só se manifesta ao operar essa distinção e sua manifestação funda ontologicamente o mundo do homem como um animal cultural. Essa oposição é contada recontada em milhares de mitos sobre seres sobrenaturais que criaram um cosmos organizado a partir do caos. Essa ordenação é representada como o surgimento de uma ilha, uma atividade ou instituição que por pertencer ao espaço sagrado organiza e estrutura o espaço profano ao seu redor. Qualquer ação, lugar ou tempo só possui valor, sentido e realidade caso o sagrado tenha ali se manifestado, pois ele confere significado e tudo que lhe escapa torna-se o lugar do não-ser, do relativo, do não-sentido. O profano é neutro, arbitrário, possui grau zero de significação e toda a ação se desenrola no sagrado que por ser intenso, real e significativo, organiza e estrutura a indistinção profana. Graças à mímesisda ação de um deus ou herói, os homens redimem o espaço profano, pois os atos sagrados são os arquétipos de todas a ações significativas realizadas pelos homens, por isso são realizados rituais periódicos onde esses atos são repetidos para garantirem a coesão vital de toda uma cultura2.
Eliade propôs o termo hierofania, cujo conteúdo etimológico indica que algo de sagrado se revela, para expressar todas as formas de manifestação do sagrado no profano, desde a mais elementar em uma pedra, árvore ou animal até a encarnação de deus em Cristo. As histórias de todas as mitologias e religiões constroem-se pelas acumulações de repetidas hierofanias nas quais o sagrado e o profano unem-se na sua diferença.
Na hierofania não existe uma continuidade simples entre os dois reinos, mas uma quebra que resulta da aparição de uma ordem diferente que não pertence propriamente ao profano e que paradoxalmente se dá através de objetos, plantas, animais, ações, instituições e pessoas que são partes integrantes do mundo profano. A manifestação do sagrado opera uma ruptura ontológica na medida em que aquilo que se revela se distingue das demais presenças profanas. O sagrado atrai e causa temor sendo por isso cercado de tabus que interditam certas pessoas e objetos devido ao perigo do contato. Por ser ontologicamente distinto, o sagrado não participa pura e simplesmente do profano, havendo uma série de regras a serem respeitadas quando se está em sua presença. Quebrá-las é romper a diferença entre os dois reinos podendo jogar perigosamente toda uma cultura no caos do não-ser. Tudo que é visível pode transfigurar-se em hierofania, qualquer objeto, animal, planta, ofício, gesto, função fisiológica, brinquedo, jogo ou dança pode ser veículo do sagrado.4
O ritual é a ocasião onde a dialética sagrado-profano é revelada-criada, pois todo ritual comporta uma forma de sacrifício (sacrum facere = tornar sagrado). Tornar algo sagrado é sacrificá-lo, separá-lo não só daquele que o oferece como também de todo o espaço profano, tornando o oferecido inalienável, pertencente a uma esfera diferente que desperta temor e fascínio. Na antiguidade, os festivais de celebração dos deuses atingiam seu clímax em um sacrifício sangrento. A matança sacrificial era o alfa e ômega do festival, pois a lâmina que cortava a carne animal era o “ligamentum” com o espírito que tornava o dia festivo, sagrado. Um dos principais atos religiosos era o derramamento de sangue, a queima das partes do animal e o banquete comunal do sacrificado. As matanças sacrificiais eram realizadas ano após ano regularmente em todos os tipos de ocasiões, e a principal tarefa dos imperadores era a supervisão da correta realização dos sacrifícios, pois a política não podia ser pensada separadamente deles, não havendo acordo, juramento, guerra, contrato, casamento, cruzamento de fronteira, construção de casa ou festivais sem a realização de sacrifícios. A matança de seres vivos é a mais antiga e difundida forma de ato religioso.5
A caça praticada pelos primeiros agrupamentos de homo sapiens não servia apenas para a aquisição de comida, mas possuía um significado ritual de sacrifício. Como uma ação sagrada ela necessitava de um espaço sagrado que se distinguia do cotidiano profano mediante vários ritos de entrada, como abstinência sexual e isolamento dos membros do grupo caçador. Após a caça, ritos dessacralizantes os traziam de volta ao mundo profano. Para os antigos caçadores o animal abatido não era um puro alimento, mas também um parente próximo, um irmão, um pai, e acima de tudo a forma animal de um deus cultuado pelos caçadores.6
Não eram os homens que pura e simplesmente realizavam tal ato, pois o ritual sacrificial mimetizava uma ação primordial realizada pelos deuses. O que era sacrificado era a forma animal de um deus, mas se o ato sacrificial repetia uma ação sagrada cosmogônica então os deuses faziam de si-mesmo deuses ao matarem a si-mesmos enquanto animais para manifestarem sua espiritualidade intrínseca. A matança sacrificial era o ato concreto de negar logicamente o profano para abrir a passagem do sagrado no profano negado. O golpe assassino do ato sacrificial é também a lâmina criadora de consciência ao realizar a “separatio” do sagrado e do profano. Ele não atinge outro indiferente, mas o próprio outro do homem, um outro que é ele mesmo enquanto criatura puramente biológica, dando luz a um ser cultural que só existe enquanto oposição viva entre sagrado e profano. A morte do animal é absoluta, unidade negativa de si-mesma e do seu outro, vida. Essa dialética também é essencial nos ritos iniciáticos. Iniciar é matar, provocar a passagem por uma porta, uma saída que serve de entrada para um outro lugar. A iniciação transpõe a passagem do profano para o sagrado e nessa passagem o iniciado conhece sua real realidade ao sofrer uma transformação que o mata como ser profano e o revive como ser sagrado. A morte iniciática é uma mudança de estado, uma morte para realidade profana que ao mesmo tempo é o nascimento para realidade sagrada. Esse novo nascimento conduz a um estado fetal, ao útero cósmico que se apresenta no mundo profano como uma cova cavada na terra, uma caverna, uma câmara secreta, a clareira de uma floresta, o interior fechado de uma tenda ou o mergulho em águas batismais. É uma morte lógica, absoluta, portanto uma afirmação plena da vida, pois o iniciado ao experimentar essa morte-em-vida conhece a si-mesmo como ser mortal ao mesmo tempo em que participa da eternidade. Essa morte da vida natural não é uma morte natural, mas uma morte lógica que inicia o morto na vida lógica intrínseca ao ser que é morte-em-vida ou vida-na-morte. O renascimento do iniciado não é natural, mas cultural, a instituição da natureza cultural antinatural do homem enquanto ser consciente. A iniciação ao permitir o iniciado experimentar-se como estando ao mesmo tempo vivo e morto, cultiva a vida lógica da alma como dialética entre os opostos. Nenhum animal tem consciência da sua própria morte e por isso dormita na inconsciência, enquanto o homem torna-se consciente ao acordar para morte, ao ser em vida um ser-para-morte graças à lógica do sacrifício que diferencia o mundo em dois reinos intercambiáveis. Morrer em vida era um pré-requisito essencial para aqueles que conheciam o mundo dos espíritos. Os xamãs serviam de intermediários entre o mundo profano e o sagrado porque experimentavam em si-mesmos uma morte sagrada, uma negação profana que é a afirmação do sagrado. Essa negação lógica é experenciada pelo xamã como se sua carne fosse arrancada dos seus ossos, ou como um desmembramento. O que faz dela uma morte iniciática é o movimento lógico de afirmação de outro mundo nesse mundo, que torna o xamã uma porta viva de acesso ao mundo dos mortos. Por poder se comunicar com os espíritos que governam a vida da tribo ele torna-se uma dialética viva, um ser não apenas natural, mas lógico. Seu corpo profano é ao mesmo tempo sagrado e por isso ele leva uma vida à parte do restante da tribo, guardando certa distância da vida profana por mediar as forças que a geram e ordenam. Estando em contato com esse núcleo gerador do profano ele renasce como identidade-na-diferença entre sagrado e profano. Nem apenas um nem o outro, mas a negação que os conecta ao afirmar o ser de cada um como o não-ser do outro. Há toda uma série de proibições como comer certos alimentos ou realizar certas ações que lembram constantemente o xamã de que mesmo estando vivo ele não pertence apenas ao domínio profano, mantendo a negatividade que impede que os dois domínios colapsem um no outro e gerando a tensão necessária para consciência que liga-separa os dois modos de ser. Não apenas os rituais de sacrifício e de iniciação, mas o ritual em sua própria forma lógica é o ato onde sagrado e profano vinculam-se através da negação que os revela-cria. Por isso o ritual era a forma primordial de dialética executada pelos homens. Nos rituais onde os dançarinos usavam as máscaras dos deuses, era visível que o mascarado não era apenas um membro ordinário da comunidade, mas também um espírito, um demônio ou um deus. É enquanto ser ordinário e profano que ele é a sua própria negação, pois esse algo sagrado pertencente a outro mundo é a própria alma da tribo a qual o dançarino pertence, o ser ao qual a comum-unidade deve sua existência enquanto todo articulado. No ritual o dançarino mascarado articula a identidade na diferença entre os dois reinos. A máscara por si é um objeto profano confeccionado pela tribo, mas que se torna sagrado por ser a explicitação da presença do sagrado no profano. Ao executar o ritual o dançarino desaparece como ser profano por trás da máscara para expressar o sagrado que se torna visível para toda a comunidade. O sagrado revelado é a essência de toda a comunidade, incluindo o dançarino, o que implica que ele oculta-se para presentificar aquilo que ele realmente “é”, pois ele é nele mesmo algo que ele não é, o ser sagrado que presentifica-se ausentificando o dançarino enquanto ser profano. Como membro da tribo o dançarino partilha a ordinareidade com todo o mundo profano ao seu redor. Quando dança, é mais intensamente ele ao ser negado, tornando-se um outro que dança através dele, que o utiliza como um veículo na sua manifestação. Todos os rituais de dança inclusive aqueles sem a presença de máscaras existem como essa dialética. A máscara facilita a expressão de que aquele que dança não é mais o ser ordinário conhecido pela comunidade, mas algo extraordinário. Por isso é comum o dançarino não lembrar o que fez durante a dança já que ele não era ele mesmo, mas um outro que só é quando ele não é. Esse outro que aparece é uma aparência-essente, pois é a essência do dançarino e de toda a comunidade que participa do ritual. A comunidade só é comum-unidade por fundamentar-se nesse outro mundo que a gera e ordena. Por isso sua história é também a história da criação do mundo pelos deuses. O dançarino quando dança explicita a essência que faz da comum-unidade um todo articulado e não um mero agregado, tornando-se assim um universal concreto, a união de si-mesmo e da essência do todo ao qual ele pertence e que torna possível ele ser ele mesmo. No ritual de dança é a negatividade lógica da vida que é explicitada e celebrada. O dançarino é ele mesmo e também o espírito que o nega e que só aparece por negá-lo, mas cuja negação afirma o próprio ser do dançarino enquanto identidade dele mesmo e da comunidade da qual participa. Não há inflação da personalidade porque o dançarino é possuído logicamente pelo espírito, não identificando-se com ele de forma imediata. Essa possessão é lógica porque o dançarino é negado enquanto ser natural para a afirmação do sobrenatural. O dançarino não desaparece de forma natural, estando intensamente presente ao doar todo o seu corpo apaixonadamente ao ritmo dançante para que o sagrado apresente-se em toda a sua intensidade e possibilite o êxtase que sacraliza o profano. Esse extase não é apenas uma intensidade emocional subjetiva, mas aquilo que exterioriza o dançarino da sua estase no mundo profano para manifestação da potência espiritual que se expressa por meio dele. Ele é transferido para  outra dimensão que por sua vez é contratransferida para a dele. O dançarino e o espírito trocam de natureza, intercambiando suas realidades7.
Enquanto dança a personalidade profana do dançarino é sacrificada em êxtase espiritualizando-se, enquanto o espírito materializa-se limitando sua realidade a particularidade daquele momento específico. Para o sagrado manifestar-se o dançarino precisa doar-se a sacralidade da sua dança, sacrificando-se através de um abandono ao que ele não é para ser o que em última essência é ele mesmo enquanto ser lógico dialético. Se ele se agarrar a sua personalidade individual o movimento dialético não se presentifica. Quando a dança acaba ele retorna a si exausto e continua a sua vida ordinária renovado, pois enquanto seu corpo dançava em êxtase ele morria enquanto ser profano renascendo em seu conceito, diferença-na-identidade de sagrado e profano. Como se trata de um movimento, da passagem de um reino no outro, o ritual precisa ser refeito em datas e situações específicas, de modo que a vida profana se desenrola enquanto ecoa a vibração da música que harmoniza os dois mundos. Como esse intercâmbio não é isento de perigos trata-se de uma harmonia tensa, onde os espíritos precisam ser constantemente apaziguados. No ritual o homem morre enquanto puro organismo animal renascendo enquanto natureza espiritual, mas ele logo descobre que essa sobrenatureza pode ser ainda mais feroz do que aquela que é negada. O sagrado e o profano opõe-se dialeticamente, pois complementam-se a partir da sua negação. A hierofania é a expressão da coexistência paradoxal do eterno e do fugaz, do ser e do não ser, do espiritual e do material. A experiência religiosa só é possível graças a “coincidentia oppositorum”, visto que o sagrado é mediado pelo profano, só aparecendo numa realidade concreta histórica. O sagrado é o totalmente outro do profano, seu ser é o não ser do profano, mas que se manifesta no seio do próprio profano. Desde a manifestação do sagrado numa pedra ou árvore, até a encarnação de deus em Cristo o que está em jogo é a manifestação de uma ordem diferente em algo profanamente ordinário. Aquilo que é sacralizado é cultuado porque torna-se outro nele mesmo. Uma pedra sem deixar de ser pedra também é uma não-pedra, algo sagrado que aparece através dela. Toda e qualquer parte integrante do mundo profano é suscetível de tornar-se uma hierofania, pois o profano tem como fundamento o sagrado que por sua vez só se manifesta graças ao profano. O sagrado tem de passar pelo profano para revelar-se como sagrado e essa passagem é o que o torna sagrado, pois ele se realiza sacralizando a realidade profana na qual se manifesta, tornando-se um centro organizador da vida cotidiana em torno do qual circuambula a vida cultural. Todas antigas culturas circuambulavam em torno desses centros onde o profano veiculava o sagrado8.
A irrupção do sagrado destaca um território do ambiente que o envolve tornando-o qualitativamente diferente. Ali se erige um templo que servirá de morada e proteção às hierofanias, verdadeiros portais para os deuses. Às vezes um sinal qualquer é suficiente para indicar a sacralidade de um lugar, traçando uma orientação. Quando sinal algum manifesta-se nas imediações, o homem provoca-o, praticando por exemplo uma “evocativo” com a ajuda de animais que mostram o local suscetível de acolher o santuário. Essa evocação pode ocorrer através da caça a um animal selvagem ou da libertação de um animal doméstico que é perseguido e sacrificado no local onde é encontrado. Ali levanta-se um altar e ao seu redor constrói-se um santuário. Os homens não são livres para escolher o terreno sagrado, eles o descobrem com a ajuda de sinais misteriosos9.
O templum era o setor celeste delimitado pela ágora romana no qual se observava fenômenos naturais como a passagem dos pássaros, e passando com o tempo a designar o edifício sagrado onde era praticada a observação do céu. A palavra grega “temenos” provinda do mesmo radical tem(cortar, delimitar, dividir), indicava o local reservado aos deuses, o recinto sagrado que cercava um santuário10..
Um templo é a morada profana do sagrado, o lugar onde os opostos convergem graças à rachadura na homogeneidade do espaço profano por onde o sagrado penetra. Essa ruptura é um centro organizador, e o templo é um microcosmo, no qual todo o macrocosmo é refletido. Dentro dele está o santuário que é ontologicamente o seu centro gerador. O santuário é para o templo o que este é para o cosmos, o local de condensação do sagrado que o apresenta para o profano. Um templo sem santuário é algo sem sentido já que o santuário é a alma do templo, o coração do seu corpo e do corpo cósmico como um todo. Dele pulsa a energia sagrada que impulsiona todo o mundo profano. O templo e seu santuário é um centro por situar-se na fronteira entre o sagrado e o profano. Essa fronteira é centro em torno do qual circulava toda a vida cultural dos antigos. A porta que abre para o interior do templo separa os dois espaços e indica a distância entre os dois modos de ser, sagrado e profano. O limiar é a fronteira que opõe os dois mundos e paradoxalmente o lugar onde eles se encontram. A porta do templo e o seu santuário são um só, pois todo o templo funciona como o local de passagem entre os mundos e o centro organizador da vida profana. O templo é uma abertura que torna possível a comunicação com os deuses, aonde eles veem ao homem e este vai a eles11.
Ao redor do templo são construídas as moradias humanas, pois as culturas tradicionais se caracterizam pela oposição entre seu território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que as cerca. O primeiro é um cosmos, um espaço organizado por meio da sacralização, enquanto além das fronteiras situa-se o caos amorfo. A sacralização de um local, a elevação de um santuário e a construção de um templo ao seu redor mimetiza em escala microcósmica a criação arquetípica realizada pelos deuses, tornando possível a estruturação de uma vida cultural separada da natureza exterior12.
A consagração que organiza o espaço é uma opus contra naturam que completa a obra exemplar dos deuses, a ordenação do caos primordial. Em termos existenciais isso requer que o ser humano diga não a natureza animal que ameaça devorá-lo e afirme uma fronteira entre o espaço cultural que habita e o mundo natural. O templo lembra-o constantemente dessa separação ao conectá-lo com a origem dela, os deuses criadores da humanidade. O santuário é então uma imagem reflexa da natureza dupla do homem, ser profano e sagrado, cultural e animal. O santuário não é um centro espacial, e sim um centro ontológico não tendo por isso um local fixo. Cada templo e cada local onde um ritual é celebrado torna-se um omphalos, o umbigo do mundo. Sem esse centro onde o vertical e o horizontal se encontram, não haveria rituais, templos ou oráculos13.
O objeto em que se manifesta o sagrado torna-se outro sem deixar de ser ele, pois algo é sagrado exatamente pelas qualidades específicas que o caracterizam enquanto objeto profano. Uma pedra é sagrada por causa da sua permanência, da sua dureza, da sua resistência às intempéries do tempo. Um animal é sagrado por sua beleza, ferocidade, agilidade, por poder voar ou nadar habilmente, por sua maternidade exemplar ou esperteza. Ser sacralizado é tornar-se lógico, ser em si-mesmo seu outro. Logo as religiões que veneram a natureza são sobrenaturais, porque seu alvo é o que está além da natureza e que se revela no modo de ser da própria natureza. No ciclo de morte e renascimento onde o inverno é sucedido pela primavera, a natureza que parecia morta se renova para reiniciar uma passagem que parece eterna em seu próprio movimento. Cada cultura particular expressa de forma específica essa dialética entre sagrado e profano. O que é universal é a própria forma lógica da manifestação. O profano nega a si-mesmo ao manifestar o sagrado, que por sua vez nega-se ao travestir-se de profano, limitando-se aquela realidade específica. A diferença ontológica entre os dois é paradoxalmente mantida através da dissolução de um no outro permitindo ao sagrado esconder-se nas árvores, pedras e rios profanos. O ser sagrado é a sacralização do profano que por sua vez conduz a uma laicização do sagrado. Os dois processos são co-extensivos, constituindo um único e mesmo movimento auto-contrário que sacraliza o laico e laiciza o sacro. Aquele que penetra na esfera sagrada depara-se sempre com significações profanas e vice-versa. Uma realidade extraordinária e trans-Histórica realiza seu ser historicizando-se, limitando-se a esfera ordinária do cotidiano14.
Na antiga Grécia os poetas revelavam através de uma epifania a verdade passada que é fonte da atualidade, enquanto o profeta enxergava o futuro que ainda ocultava-se no horizonte. A diferença entre o poeta e o profeta não se devia simplesmente às suas características pessoais, mas aos deuses que eles intermediavam. Ambos desvelavam a verdade por estarem inspirados, cheios de deus, mas enquanto no profeta falava a voz de Apolo, no poeta fala a de Mnemósyne, deusa de memória e mãe das musas. A função da memória dada ao poeta por Mnemósyne não se refere à lembrança de um passado histórico, não dizia respeito ao tempo cronológico, mas a uma outra dimensão do cosmos cujo acesso lhe era permitido para que retornasse ao mundo profano e cantasse a realidade primordial. Exatamente por isso Mnemósyne conduz ao esquecimento do tempo presente. O consultante do oráculo de Lebadeia era conduzido a beber de duas fontes que estavam na sua entrada, a de Lethe e a de Mnemósyne. Esquecendo do tempo profano o poeta esquecia temporariamente sua pertença à raça de ferro, que era o estado temporal de miséria, cansaço e angústia vivido pelos gregos na época, para lembrar a todos que os ouviam das fontes sagradas de onde brotaram todo o mundo profano. Através da negação da sua realidade profana o poeta acessava o sagrado de onde originou-se o mundo. As águas de Lethe levavam ao esquecimento da vida humana essencial no acesso ao sagrado, enquanto as águas de Mnemósyne mantinham a lembrança de tudo que o poeta iria ver e ouvir no outro mundo15.
Ao complementarem-se na sua oposição as fontes são imagens da lógica que por meio da negação da realidade profana permite ao poeta tornar seu canto uma hierofania, uma manifestação do sagrado, do tempo Èon dos deuses onde originou-se tudo que existe no tempo cronológico profano. A verdade imortal é ao mesmo tempo o canto de uma criatura frágil submetida à miséria, dor e angústia típicas da fugacidade dos seres mortais. O sagrado só existe como negação do profano, mas essa negação institui o mundo profano como tal, criando-o como algo definido e determinado ao ordená-lo. Ao mesmo tempo o mundo profano criado pelo sagrado torna o profano possível ao servi-lhe de receptáculo, permitindo que ele se manifeste. Se não houvesse um mundo profano para negar não haveria o sagrado, pois essa negação lhe é imanente. Por ser o que é somente através do profano, o sagrado sofre uma limitação a partir dele mesmo, sendo isso que constitui uma hierofania, a passagem de um no outro que coagula os limites um do outro ao dissolvê-los. Na hierofania o profano coagula sua identidade, delimitando-se ao transgredir sua limitação apontando para um além. Uma pedra não deixa de ser pedra ao sacralizar-se, mas sendo precisamente uma pedra dissolve sua fixidez apontando para além das fronteiras profanas, tornando-se por si-mesma uma apresentação do sagrado. O profano é um mundo invertido, onde algo é venerado por ser um outro além de si em si-mesmo. Essa inversão é o sagrado travestindo-se de profano, vestindo uma roupagem natural que o camufla nas árvores, pedras, rios, animais. Ao vestir-se de profano o sagrado não apenas se esconde como também se revela, sendo essa tensão de contrários algo imanente à vestimenta enquanto hábito, que indica tanto o vestuário quanto um estado ou condição, como é o caso dos trajes utilizados por frades, padres e freiras. O ato ambíguo de se vestir, tanto vela como desvela, pois o vestuário esconde e revela uma condição16.
A vestimenta é um ato primordial de cultura. A instituição de condições especiais que exigem vestimentas adequadas rompe a homogeneidade da vida natural. Vestir-se é diferir da condição natural, sair do éden, forjar uma nova natureza. Antes da vestimenta o que havia era uma pura imediatez animal, o corpo nu e inocente da natureza. A vestimenta ao interpor-se entre o corpo e a natureza os separa e os estabelece como realidades distintas. Essa mediação cria-revela a cultura e natureza, pois antes dela o que havia era um todo contínuo, amorfo e indistinto. Algum animal sabe o que é a natureza? Ele apenas a vive irrefletidamente, não constituindo ela um problema para ele, pois sua relação com ela não é questionada. Por não refletir sobre a morte o animal não conhece a vida, apenas a age cegamente de acordo com seus impulsos instintivos. A lógica do real que nele age dorme o sono inocente da vida natural. A vestimenta profana revela o sagrado como um véu que ao cobrir um corpo delineia sua forma, a extensão dos seus braços e pernas, os volumes dos quadris, o tônus do tórax. Esse delinear define o sagrado coagulando-o numa forma. Sem isso ele seria informe e como é próprio dele ordenar o caos informe profano, ele contraria sua natureza eterna naturalizando-se. É precisamente por camuflar-se no profano que o sagrado se manifesta e graças a isso os antigos não viviam num mundo opaco e inerte, sendo sempre confrontados e seduzidos com o mistério de uma natureza que ao se camuflar desvela-se como sobrenatural. Essa camuflagem constitui a essência do sagrado que, ao aparecer, nega a si-mesmo como eterno e imutável. Em cada cultura o sagrado traveste-se de maneira diferente, adquirindo as formas e coloridos específicos da sua vestimenta. O que caracteriza e diferencia uma cultura antiga da outra é fundamentalmente a vestimenta utilizada pelo sagrado, algo de uma importância tal que leva uma cultura a guerrear com a outra para impor-lhe seus costumes específicos. Isso ocorre porque a própria identidade cultural constitui-se como uma persona do sagrado. Longe de ser aquilo que apenas impede a manifestação do sagrado, o profano é o meio por excelência da sua manifestação, pois aquilo que é fantástico, extraordinário só aparece sob a máscara do ordinário e banal. O sagrado não aparece somente através do que é incrível e espetacular, pois mesmo a existência mais pálida e sem brilho pode servir de palco para uma hierofania17.
No mundo mítico o brilho dos deuses irradiava-se dos próprios fenômenos que lhes eram consagrados. Na antiga Grécia a palavra théos, não era utilizada do mesmo modo que no monoteísmo judaico-cristão que primeiro afirma a existência de deus para então enumerar seus atributos dizendo por exemplo,  que deus é bom, que é amor e assim por diante. Na Grécia a palavra deus brotava do impacto causado por um fenômeno, que os impressionava ao ponto de afirmarem por exemplo que o amor é um deus, ou a guerra é um deus, pois são mais que humanos, não estando sujeitos a morte ou envelhecimento. Qualquer evento que escapa ao controle do homem é potencialmente um deus18.
Quando olhamos para as paixões e vícios dos antigos deuses que faziam dos fenômenos naturais seu local predileto de manifestação, tem-se a impressão que eles eram mais próximos dos homens do que o deus transcendente do monoteísmo. Mas mesmo com suas paixões e intimidade com a natureza, os deuses guardavam uma estranheza fundamental com o mundo dos homens. Mesmo quando se apresentavam nas chuvas, nos mares, mesmo que participassem ativamente dos assuntos humanos, das guerras, casamentos, da política, eram como divindades que atuavam, conservando um distanciamento que definia sua substância sagrada como negação da profana.
Aristóteles nega que possa existir philia entre o homem e Deus, porque a disparidade entre eles é demasiado grande; e (…) um dos seus discípulos observa que seria excêntrico (atopon) que alguém proclamasse seu amor por Zeus. De fato, a Grécia clássica carecia de palavras para expressar tal emoção: o termo philotheos (amor a Deus) aparece pela primeira vez no final do século IV e os autores pagãos raras vezes o empregam19.

” Enquanto antigamente o homem só se considerava verdadeiramente humano por mimetizar um modelo transumano, o homem moderno se reconhece humano na medida em que não apela para nada além de si. Para o primeiro interessava somente o mito, a história sagrada enquanto narrativa arquetípica que provê modelos típicos de comportamento, enquanto o segundo constrói sua própria história como narrativa do progresso, da superação do antigo onde o sagrado torna-se um obstáculo à sua liberdade. Se para o primeiro era a manifestação do sagrado que tornava esse mundo algo real, o segundo dessacraliza o mundo para conhecê-lo objetivamente. Tendo retirado os seus trajes sagrados ele se reconhece como o único sujeito agente da história, recusando qualquer apelo à transcendência20.
Tal dinâmica é o resultado do próprio cristianismo no qual deus, ao transcender a natureza, tornou-se tão inatingível para o homem que sua existência foi posta em dúvida. Mas essa é apenas uma parte da história. A outra é que esse arrancar-se violento da natureza é o que possibilitou a encarnação humana de deus. Para compreendermos melhor esse movimento lógico, precisamos retornar ao velho testamento onde estão as origens da religião cristã para flagrar o momento bíblico onde deus nega a si-mesmo enquanto fenômeno natural. Esse momento é o êxodo dos judeus do Egito, que enquanto povo escolhido não podia mais compartilhar a sacralidade natural dos egípcios e seus deuses com cabeças animais. Moisés sob o comando de Yaweh retira o seu povo dessa nação profana e os conduz através do deserto em direção à terra prometida. Durante esse êxodo há um momento crucial onde os dois mundos colidem. Um situa-se nas terras baixas, caracterizando-se por um deus que aparece em uma forma animal feita de metal e cultuado através de oferendas. O outro mundo é o pico da montanha, regido por um deus invisível e transcendente com um código moral de leis gravado em tábuas de pedra. O encontro dos dois se dá com um Moisés inflamado pela ira divina do deus da montanha acabando com a celebração em honra ao deus do bezerro de ouro. O episódio encerra-se com Moisés forçando todos a uma decisão, ao perguntar quem está do lado do senhor e comandando esses a pegarem suas espadas e matarem os discípulos do deus do bezerro de ouro.
O bezerro representado na imagem refere-se a uma antiga representação taurina de Yaweh. Isso significa que o que ocorreu na passagem bíblica não é um culto a um deus estranho, uma infidelidade rebelde. O que a narrativa personifica é uma transformação na imagem de deus, no modo como o sagrado relaciona-se com o mundo profano. Nas antigas religiões politeístas encontram-se vários deuses antropomórficos junto a animais que os servem, deidades em forma humana mostradas com os pés descansando em touros. Havia na antiguidade tardia um culto no qual um trono vazio era erigido para convidar uma deidade invisível a tomar posse dele. A imagem do bezerro de ouro pode ser compreendida como algo similar, uma estátua que servia de pedestal erigido para convidar o deus invisível a descer das suas alturas21.
As primeiras divindades da cultura humana possuíam formas naturais, eram plantas, o vento, uma montanha, o trovão, um rio, ou determinado animal. Com o tempo uma diferenciação foi ocorrendo e os deuses deixaram de ser os próprios fenômenos tomando-os em sua posse. O deus não era mais idêntico ao trovão, ou a chuva, e sim aquele que os controla, não é mais a montanha, mas aquele que a fez ou que a governa do seu cume. O animal tornou-se então um aspecto inferior do deus que agora possui uma forma humana ou tornou-se invisível. Mas mesmo como pedestal ele ainda é parte da divindade, sua fundação no mundo profano que possui o poder de trazer o deus superior pra as terras baixas graças a conexão íntima que mantém com ele. Contudo o deus de Moisés arrancou-se da sua base animal em seu impulso para as alturas. A espada de Moisés não apenas massacrou os adoradores do bezerro como também cortou o vínculo que unia deus e suas patas taurinas22.
Através desse corte Yaweh abandonou de vez sua visibilidade tornando-se completamente invisível. Mesmo que em sua antiga forma ele já o fosse, ainda assim possuía visibilidade na forma do pedestal taurino que transparecia a necessidade de uma imagem animal visível que o tornasse presente. O touro, a antiga manifestação do sagrado em seu contrário, perde sua qualidade hierofânica dessacralizando-se junto com toda a natureza. Deus agora apresenta-se apenas na fé e na pregação da sua palavra. Os antigos deuses politeístas não eram puros criadores extra-mundanos do mundo, mas também aspectos dele, exibindo suas qualidades divinas através das qualidades naturais: na fertilidade trazida pela chuva, no calor irradiado pelo sol, no poder destrutivo de um vulcão23.
Yaweh está além de tudo isso, transcendendo a natureza, ele a olha de fora como uma ferramenta criada por ele e utilizada para demonstrar o seu poder. Exteriorizando-se radicalmente da natureza Yaweh adquire a possibilidade de ser um deus único e universal. Enquanto permanecia atrelado a sua imagem taurina ele era um entre muitos, já que além do touro havia muitos outros animais, havia também o sol, os rios, o mar e toda uma multiplicidade de fenômenos naturais, cada um irradiando o brilho de um deus específico através das suas qualidades particulares. Enquanto se manifestasse numa imagem particular ele seria parte de um panteão de deuses. A rejeição da naturalidade e sua ascensão às alturas transcendentes é também o nascimento de deus enquanto verdade universal. Religiões politeístas não conseguem conceber tal espécie de universal, pois nelas os deuses estão presentes enquanto fenômenos diferenciados entre si que particularizam os deuses por meio dessas diferenças. A perda da concretude natural é o preço pago por Yaweh para ganhar uma idealidade universal. Sua manifestação não ocorre mais em lugares e fenômenos naturais específicos e a palavra revelada pelos seus propagandeadores tornou-se o veículo hierofânico da sua natureza antinatural. A perda da concretude natural torna necessária a fé, a crença nas palavras propagandeadas para fazê-lo real. Deuses politeístas não requerem fé, suas manifestações particulares falam por si. O deus do trovão, o deus da guerra, a deusa do amor não necessitam de fé para serem reais porque eles estão na guerra, no trovão, no amor expondo a todos os presentes o seus poderes. Por isso quando Jung perguntou a Ochwiay Biano, um índio Pueblo cuja tribo cultuava o sol, se sol era uma bola de fogo criada por um deus invisível, ele respondeu: “O Sol é Deus; todos podem ver isso!”24.
Deus está no próprio fenômeno, todos podem vê-lo, isto é, todos que compartilham da tradição que o cultua. Tal tradição é profundamente enraizada no solo geográfico onde floresce, constituindo uma segunda natureza que é a natureza antinatural a que chamamos cultura. Por isso cada cultura privilegia determinados fenômenos em detrimento de outros devido à importância que possuem para o local específico onde está enraizada aquela tradição. Para uma o rio que abastece sua agricultura é um deus, já outra na qual o rio não desempenha papel relevante não cultua um deus dos rios podendo em vez disso cultuar um deus da montanha que estende-se soberano, impondo respeito pela beleza da estabilidade que expõe aos que moram sob a sua sombra. Uma cultura que floresce nas neves não possui um deus da montanha, mas cultua um deus das neves por esse fenômeno determinar todo o seu modo de viver. Esses fenômenos naturais hierofânicos são centros ontológicos para esses povos, neles estão o eixo onde sagrado e profano passam um no outro, doando concretude ao sagrado que ordena o profano antes amorfamente caótico, ao batizá-lo com os padrões e modelos primordiais.
Para as religiões politeístas o mundo que se estende para além das suas fronteiras é o lugar do caos amorfo. Estando sob a tutela do sagrado que se manifesta na natureza, o tempo para eles é o tempo sagrado da natureza em seu eterno retorno. Tendo como modelo arquetípico as estações do ano, o florescimento e frutificação das plantas, os ciclos lunares, o fluxo das marés, o ritmo da menstruação e do cio animal, esse tempo circular gira ao redor do encontro do sagrado com o profano e situa-se em oposição ao tempo linear cronológico, essencial no desenvolvimento da noção de progresso. Nesse tempo circular todas as ações significativas foram executadas pelos deuses, logo todas as grandes ações humanas são repetições dos arquétipos divinos.
Uma religião monoteísta na qual deus está fora da natureza tornou-se possível em um povo marcado pelo nomadismo. Sem raízes em um território específico o acesso ao sagrado não dependia tanto de fenômenos naturais particularmente importantes para sua sobrevivência. Eles não tinham uma montanha ou rios específicos, pois mudavam constantemente de local. Para tal cultura o melhor acesso ao sagrado é a palavra, a narrativa da sua própria história enquanto povo escolhido,  contada pelos sábios, que lhes fornecia um senso de coesão, ordem e unidade que outros povos tinham como evidentes por estarem expostos aos mesmos fenômenos naturais regularmente.
Para os judeus a palavra é a sua terra sagrada, a raiz e a copa que comunicam o céu e a terra, o sagrado e o profano, deus e os homens. Isso não quer dizer que locais e objetos concretos não possuíssem nenhuma aura sagrada. O templo de Jerusalém e a arca da aliança onde estavam os dez mandamentos irradiavam o brilho sagrado. Deus não proibiu toda e qualquer imagem profana, apenas a adoração de imagens naturais. O que ocorreu não foi a total exclusão desse mundo, pois um deus que não se manifesta no profano não é sagrado, visto que um só é através do outro. O que aconteceu foi a intensificação da oposição entre sagrado e profano, uma maior diferenciação entre as duas formas de ser que clareou a natureza antinatural da cultura que no politeísmo ainda não era tão evidente. A desnaturalização de deus fez das obras culturais humanas o lugar por excelência de hierofania. A desnaturalização divina também intensificou sua humanização e,  portanto,  a desnaturalização dos seus discípulos. Mas essa opus contra naturam não estaria completa enquanto o deus universal fosse o deus particular de um povo específico, cujos membros ligavam-se entre si por laços naturais de consaguinidade, e cuja descendência se dava pela linhagem materna. Para ser realmente universal deus não podia ser exclusivamente judeu e o cristianismo impulsionou ainda mais longe sua contranaturalidade. Cristo radicalizou o trabalho de Moisés e suas palavras cortaram ainda mais fundo os laços do homem com a natureza. No capítulo quatro do evangelho de João há um exemplo notório desse corte. Trata-se da passagem que mostra Jesus conversando em uma fonte com uma samaritana.
- Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais prestavam culto neste monte; vós, ao contrário, dizeis que em Jerusalém que se deve prestar culto.
Jesus lhe diz:
- Crê em mim mulher. Chega a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém se prestará culto ao Pai. Vós prestai culto ao que desconheceis, nós damos culto ao que conhecemos; pois a salvação procede do judeu. Mas chega a hora, e já chegou, em que os que prestam culto autêntico prestarão culto ao Pai em espírito e de verdade. Tal é o culto que o Pai procura. Deus é Espírito, e os que lhe prestam culto haverão de fazê-lo em espírito e de verdade. (Jo 4.9)
O que está em questão é o local específico de adoração. A montanha e Jerusalém são entidades positivas, positividades, locais visíveis no mundo real, pode-se apontar o dedo para elas afirmando que ali estão. Essa forma de hierofania é característica de religiões tribais, e a referência aos pais transparece a ligação étnica com a tradição de um grupo. Toda religião étnica possui seus lugares sagrados localizados no espaço geográfico26. O que para uma pode ser um lugar sagrado de culto,  pode não ser para outra, e quando as duas guerreiam esses locais são alvos privilegiados de ataque, pois cada local põe em questão a sacralidade do outro, constituindo-se enquanto alternativas (ou um ou o outro) e por isso sua destruição indica a superioridade de um sobre o outro provando qual dos dois é verdadeiramente sagrado.
Essa forma de culto diferencia sagrado e profano segundo uma lógica extensiva, este local é sagrado, aquele não é. O que Jesus faz é negar essa concepção extensiva de sagrado, pois ao negar ambas as alternativas tradicionais de culto o que é posto em questão é a concepção espacial de religião. Não há um topos privilegiado de acesso ao sagrado, o que não significa que não haja um local de culto, há, mas se trata de um não-local. Cristo nega a noção espacial de sagrado,  reafirmando-a de um modo mais sutil e refinado. Não é que não haja mais lugares sagrados e sim que qualquer lugar torna-se sagrado se ocorrer nele um culto a deus no espírito. Do mesmo modo que os alquimistas falavam de uma pedra que não é uma pedra, (lithos ou lithos) estamos diante de um lugar que é não é um lugar (topos ou topos). Não se trata de uma negação unilateral que joga tudo na indeterminação pois,  Cristo não está negando a realidade do sagrado, mas afirmando sua não restrição a um local específico. Trata-se de uma negação absoluta que espiritualiza a noção de lugar e localiza o espírito na realidade. Apenas se as propriedades extensivas do sagrado são negadas é que o espírito universal se efetiva concretamente. As antigas religiões não concretizavam o universal de um modo tão efetivo quanto o cristianismo visto que restringiam o sagrado a locais positivos específicos.
Mas o que o é o espírito a que Cristo se refere? Ele fala que como deus é espírito a adoração a ele deve ocorrer no espírito e na verdade. “Deus é espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4.24). Se deus é espírito e a adoração à ele ocorre no espírito, então a adoração à deus ocorre nele mesmo. Deus adora a si-mesmo através da adoração do homem, portanto humaniza-se. O homem adora deus no espírito, em espírito, como espírito, ou seja, torna-se ele mesmo espírito, diviniza-se. O espírito referido aqui é o espírito santo, o processo ourobórico de diferenciação-identificante. Quando Cristo afirma que carrega a espada que separará pai e filho, é o vínculo sanguíneo característico das religiões étnicas que sua espada se dirige.
Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada. Vim tornar inimigo um homem com seu pai, uma filha com sua mãe, uma nora com sua sogra, e os inimigos de uma pessoa são os de sua casa. Quem amar seu pai ou sua mãe mais que a mim, não é digno de mim, quem amar seu filho ou sua filha mais que a mim, não é digno de mim. (Mt 10.34)
O espírito não está vinculado a nenhum local característico de uma tribo. O cristianismo aspira a universalidade, a religação não de um povo específico mas de todos os particulares com o verdadeiro universal. Por isso ele precisa cortar os laços sanguíneos, diferenciando-se das religiões fundamentadas em parentescos. Não há mais santuários, templos, montanhas ou objetos sagrados, e as igrejas são apenas edificações profanas, locais de reunião, o que não quer dizer que não haja mais locais sagrados e sim que qualquer local pode tornar-se sagrado se deus estiver presente no espírito e na verdade. “Onde dois ou três estiverem reunidos juntos em meu nome, eu estarei entre eles” (Mt 18.20). O nome em torno do qual ocorre a reunião é o espírito santo, que não é uma imagem específica, um conteúdo particular, mas um processo autocontrário de humanização de deus e divinização do homem.
Os antigos deuses politeístas também assumiam forma humana. Zeus assumindo a forma de Amphytrião para seduzir sua esposa Alkmene e Atena aparecendo a Telêmaco como Mentes, um amigo de Odisseu, são alguns exemplos. Mas são deuses particulares disfarçados de humanos particulares. No cristianismo é toda a substância divina, todo o poder sagrado universal que renasce em forma humana. O que antes aparecia sob uma multiplicidade de imagens torna-se um único processo, radicalizando a oposição complementar entre sagrado e profano. Deus não é mais visível, pois não pode mais ser acessado como um conteúdo semântico entre outros. O que o cristianismo impõe radicalmente à consciência é o nível da sintaxe, a forma lógica enquanto processo dialético, que insinua-se bem mais explicitamente do que nas mitologias politeístas embora ainda esteja por demais imerso em personificações particulares.
Graças à encarnação o ser humano adquiriu um novo status, uma dignidade até então inédita no mundo antigo, tornou-se o santuário de deus, o responsável pela sua presença no mundo. Livre das amarras naturais e investido com uma nova força ele pode agora olhar a natureza de fora e utilizá-la como ferramenta para a manifestação das suas ideias. Tendo perdido o seu lugar junto à natureza, ele se tornou utópico, buscando tornar visível no mundo seus ideais invisíveis. Mas uma novidade tão radical assim não é compreendida de imediato pela massa de fieis. A encarnação enquanto processo ocorreu lentamente ao longo do Éon cristão, fermentando no coração dos crentes e impulsionando todo o projeto cultural ocidental.
Tendo abdicado de uma manifestação cultural palpável, a questão da existência de deus tornou-se um problema para os cristãos. Acreditar pura e simplesmente na superficialidade das imagens presentes nas palavras dos propagandeadores do Cristo não garante a encarnação divina, sendo necessário dedicar a deus aquilo que o homem tem de mais humano e que o diferencia de todos outros seres, sua sabedoria. Assim na primeira metade do Éon cristão, a existência divina tornou-se a questão central para o homo sapiens. Essa época foi permeada pelo escolasticismo, onde os cristãos foram à escola para aprender sobre a natureza antinatural de deus. Nessa fase dominada pelo peixe ascendente o homem, contra todas as suas necessidades práticas, negou sua natureza carnal para dedicar-se à transcendência divina. Todos os desenvolvimentos pagãos caíram no obscurantismo devido o foco de atenção ter se voltado completamente para a revelação cristã. É como se tivesse sido necessário abrir mão de toda a riqueza pagã para se dedicar ao novo tesouro que tinham nas mãos. Apenas os conteúdos pagãos que poderiam ajudar na purificação do tesouro cristão foram valorizados, como foi o caso da filosofia aristotélica que serviu de base para o escolasticismo26.
No renascimento o tesouro pagão foi retomado em busca dos conteúdos necessários para trazer deus a esse mundo, foi o início do humanismo. Se na idade média o primeiro peixe ascendia espiritualizando o homem, o renascimento de deus no homem foi impulsionado pelo segundo peixe que elevou o valor do homem perante o divino. Nesse período as obras de diversos pensadores abalaram o domínio dogmático exercido pela igreja. Mas apesar do aspecto inovador muito desses pensadores não eram ateus, para eles a natureza havia sido criada por deus para ser conhecida e admirada pela inteligência humana. Graças à capacidade de criar fórmulas e instrumentos eficazes, essa inteligência podia acessar a ordem que governava o movimento das coisas terrestres e celestes. Essas fórmulas e instrumentos não são estáticos e cada geração continua o trabalho da outra, questionando e complexificando as produções dos seus antecessores.
Esses avanços permitiram ao homem conhecer os mais recônditos refúgios da natureza e em nenhum deles detectou-se a menor presença do criador supremo. A cada nova descoberta o homem avançava no controle da natureza, reestruturando-a de acordo com as suas conveniências. Se no começo o intelecto humano era considerado um presente divino, tendo sido criado à sua forma e semelhança, com o tempo ele assumiu o lugar o seu criador. O homem não olha mais a natureza admirado com o poder criador da inteligência divina, mas se encanta com sua própria capacidade de transformar a natureza de acordo com sua vontade.
Se a inteligência humana vasculhou o universo e não encontrou o menor sinal de deus onde ele estava então? “Na mente humana” foi a resposta encontrada. O homem não consegue encontra o seu criador porque ele é uma criação sua, uma projeção de algo que lhe é interno no mundo exterior da natureza. A situação se inverteu, a criatura subiu no trono vazio do criador transformando-o numa projeção da sua necessidade de ordem e significado. Nesse início de milênio a era de peixes chegou ao seu final, a encarnação se completou e o cristianismo realizou seu escopo.
O sagrado sempre se mascarou nas realidades profanas, mas no mundo moderno essa camuflagem assumiu sua forma mais radical. Procurar o sagrado extensivamente na forma de algum conteúdo específico como eram as imagens míticas dos deuses é a melhor forma de não encontrá-lo. A consciência coletiva não é mais informada pela mesma relação que a consciência mítica mantinha com a natureza. O cristianismo potencializou a desnaturalização da substância sagrada, abstraindo-a de qualquer conteúdo particular específico e revelando o que ela era em sua essência, um movimento dialético. O resultado foi a profanação do sagrado, seu mergulho nas profundezas do secularismo humano.
O homem pós-moderno afirma a ausência de deus porque não o encontra nos lugares que ele deveria estar, nem se reveste das formas que supostamente uma divindade deveria vestir. A passagem do sagrado ao profano foi tão intensa que ele agora se manifesta no que há de mais cotidiano, naquilo que é tão banal que aparentemente nada tem a revelar. É no corriqueiro que se pode reencontrá-lo, pois é lá ele se oculta. Depois da encarnação a manifestação do sagrado tornou-se quase irreconhecível.
O homem moderno a-religioso assume uma nova situação: reconhece-se como o único sujeito e agente da História e rejeita todo apelo à transcendência. Em outras palavras, não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana, tal como ela se revela nas diversas situações históricas. O homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida em que dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio quando estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus. Não nos cabe discutir, aqui, esta tomada de posição filosófica. Constatemos somente que, em última instância, o homem moderno a-religioso assume uma existência trágica e que sua escolha existencial não é desprovida de grandeza. Mas o homem a-religioso descende do “homo religiosus” e, queira ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir de situações assumidas por seus antepassados. Em suma, ele é o resultado de um processo de dessacralização. Assim como a “Natureza” é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos obra de Deus, também o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Isto significa que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor, esforçando-se por se “esvaziar” de toda religiosidade e de todo significado transumano. Ele reconhece a si próprio na medida em que se liberta e se “purifica” das “superstições” de seus antepassados. Em outras palavras, o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não pode abolir definitivamente o seu passado, porque ele próprio é produto desse passado. É constituído por uma série de negações e recusas, mas continua ainda a ser assediado pelas realidades que recusou e negou. Para obter um mundo próprio, dessacralizou o mundo em que viviam seus antepassados; mas, para chegar aí, foi obrigado a adotar um comportamento oposto àquele que o precedia – e ele sente que este comportamento está sempre prestes a reatualizar-se, de uma forma ou outra, no mais profundo de seu ser27.
Quanto maior a altura atingida por deus, maior a sua queda, e o deus cristão ao atingir a mais alta transcendência caiu na mais profunda imanência cotidiana. Enantiodromicamente é nela que agora estão os mistérios. Os alquimistas já intuíam que para encontrar o espírito divino na matéria deviam procurar naquilo que está à vista de todos e que exatamente por isso não é reconhecido. Mas o homem pós-moderno ignora a camuflagem do sagrado nas atividades profanas, pensando estar realizando ações que nada tem a ver com o transcendente, tornando-se um espectador entediado e impaciente de uma existência que se desenrola em meio a uma banalidade opaca e sem sentido. Se antes o impulso sexual-agressivo era vítima da repressão religiosa, hoje a situação se inverteu, sendo a sacralidade considerada um mero disfarce para a imanência humana, tornando-se vítima da mesma repressão de que antes era acusada. Por isso Eliade posicionou-se na contramão de Marx e Freud que desmascararam o inconsciente social e pessoal nos fenômenos sagrados, invertendo os seus ensinamentos de como penetrar nas superestruturas para revelar suas motivações ocultas. Se nos fenômenos sagrados ocultam-se motivos econômicos e sexo-agressivos é porque é possível perceber sutilmente neles o brilho do sagrado camuflado.
Isso significa que a linguagem tradicional utilizada para expressar o sagrado tornou-se obsoleta. Tal linguagem costuma afirmar que o sagrado é isso ou aquilo, mas a alquimia cristã dissolveu o conteúdo sagrado em seu movimento revelador. Enquanto o pensamento permanecer preso à linguagem extensiva, deus jamais será uma presença real nesse mundo, porque essa linguagem insiste em objetificar o que em essência é um movimento lógico-dialético.
Para o sagrado ser real é necessário que se submeta às características específicas que definem a atualidade em que vivemos. É preciso que ele preste contas ao espaço-tempo particular no qual se manifesta, pois ele é nele mesmo esse processo de desdobramento que espacializa e temporaliza sua pura intensividade, e que simultaneamente se recolhe num ponto virtual onde repousa em sua unidade eterna. Imaginar o sagrado como pura extensão é cair na armadilha de expulsá-lo para um outro mundo, quando na verdade esse outro mundo é a interioridade absoluta desse mesmo mundo em que vivemos.
O sagrado se realiza sacralizando o profano, o que implica sua profanação. Se o esquecimento do sagrado é o resultado da dominação racional-abstrata então é só a partir dela que ele pode ser recuperado. O que não se realiza apenas retornando aos tempos passados onde ele era mais explícito, mas também mantendo-nos firmemente ancorados ao secularismo que nos rodeia. Uma ressacralização concreta do profano só ocorre no próprio profano, na interiorização dele na sua mais profunda imanência de forma que ele descubra a si-mesmo não só como partícula extensiva, mas como fluidez processual.
Apesar da necessidade que o sagrado tem do profano para se manifestar como tal, o modo de ser sagrado recebeu mais atenção e importância ao longo da história do cristianismo. O prato da balança cristã pendeu para o lado da divindade infinita e todas as qualidades pertencentes a ela tiveram um peso bem maior na articulação da cultura. Foram privilegiados o espiritual, a ordem, o masculino, o eterno, a essência, a unidade, a totalidade, o infinito, a transcendência, o sentido, a verdade, a estabilidade, o antigo, o gregário, a autoridade, a verticalidade. Neste segundo milênio após o nascimento de cristo o segundo peixe do Éon cristão ascendeu na roda do tempo e os pólos antes sombreados retornaram enantiodromicamente para consciência. Nesses tempos pós-modernos celebram-se o corpo, o caos, o feminino, o fugaz, a aparência, o múltiplo, o fragmentário, o finito, a imanência, o não-sentido, a ficção, a instabilidade, o novo, o nomadismo, a rebeldia, a horizontalidade, a dimensão profana da vida. Tudo que havia sido varrido para debaixo do tapete tornou-se foco de atenção na pós-modernidade e tudo que antes ocupava o centro da vida cultural foi marginalizado e expulso para onde estavam antes aqueles que agora estão no centro. Na verdade a própria relação centro-margem se inverteu e o centro foi marginalizado, atacado, desconstruído, enquanto a margem foi centralizada tornando-se bem mais interessante e fecunda nesses novos tempos. A noção de verdade essencial ao opus metafísico foi desconstruída como uma metáfora entre ouras, um tropo mestre cego as suas raízes ficcionais. Ao invés da verdade, jogos de linguagem. Essa inversão enantiodrômica exerceu um contrabalanço necessário e bem vindo, mas torna-se um problema quando passa a repetir a mesma atitude que antes sofria, identificando-se com seu agressor em sua unilateralidade. Diferente da rebelião adolescente pós-moderna que dança ao som da nova moda zombando dos antigos saberes como velharias ultrapassadas, a negação dialética é “puer et senex”, conjugando o novo e o antigo em sua diferença interna.
A fascinação pós-moderna pelas infraestruturas da matéria, pelas formas embrionárias de vida tem nos levado a assistir uma série de destruições de estruturas tidas como solidamente consistentes. Assim como os antigos experenciavam uma necessidade de anular periodicamente o mundo através de algum ritual para poder renová-lo, essas destruições selvagens impulsionam a criação de novos modos de vida não corrompidos pela mesquinhez do tempo e da história.
Vivemos sob a sombra da arte pós-moderna e seu furor anarco-iconoclástico de fragmentar, romper, quebrar e matar a si-mesma para nesse trajeto reencontrar-se numa forma renovada. A vanguarda é posta em xeque pela transvanguarda que vai além do além questionador da vanguarda, tornando-se antiarte desestetizada, desdefinida, desmaterializada, dissolvendo suas fronteiras ao fundir-se com uma vida que se torna cada vez mais estetizada e dominada pelo design, enquanto que a arte pós-moderna destrói a noção tradicional de beleza na busca pela estranheza presente nos objetos mais familiares. Sempre na expectativa pelo novo, a sociedade pós-moderna rejuvenesce através de técnicas cirúrgicas, não hesitando destruir os valores tidos como mais duradouros em sua ansiedade pueril pela novidade. Nenhuma época foi tão criativa e tão destrutiva ao mesmo tempo, pois o retorno à inocência de um estado germinal eternamente nascente é a contraparte da destruição atômica que reduz a vida as suas partículas mais básicas.
Quando a palavra “criatividade” sai de cada lábio, vive-se na expectativa de encontrar um gênio em cada canto. Essa conversa encobre a impotência, é uma paródia perversa da criatividade. O culto da novidade olha com desprezo para o que veio antes, simplesmente pelo fato de ter vindo antes. Tudo tem de ser absolutamente novo, então, fora com o velho e obsoleto! Ele explora o recurso inteligente de elevar o presente rebaixando o passado. Ele anuncia o novo relevante com um milhão de manifestos decantando a irrelevância do velho. Mas esses gritos de guerra incitantes da “avant garde” são ambivalentes: junto com a originalidade verdadeira, estamos igualmente propensos, talvez mais propensos, a ser imitadores. Todos têm ser absolutamente “novos”, “diferentes”, “originais”, ou seja, todos têm de ser absolutamente os mesmos. Ser novo torna-se o estereótipo supremo. Disso um milhão de cópias são reproduzidas, todas idênticas em sua alardeada “diferença” vazia. Além disso, essas cópias são profundamente uniformes, porque todas elas não copiam absolutamente nada. Essa originalidade é uma pobreza absoluta. Uma criatividade desarraigada e absolutizada reverte-se novamente em mímesis destituída de qualquer original. A criação a partir do nada cria a imagem do nada. Estranhamente o culto da novidade (contradizendo a si mesmo – mas ele está pouco se importando com a contradição) adota como sua única norma a máxima de que tudo tem de ser novo. A norma é que não deve existir normas. Assim, ele gera uma transição incessante de uma novidade para outra. Mas o paradoxo devastador é que nada nunca muda. Pois sua norma básica é fundamentalmente um princípio da obsolescência. O culto da novidade, por sua lógica autocontraditória, tem de tornar obsoleta toda novidade. Ele, portanto, só é realmente possível como um culto da decadência. Ele precisa camuflar sua impotência subjacente por meio da mudança incessante de cenário, confundindo essa mudança de cenário com a criação de um drama diferente28.
O pós-modernismo clama por uma abertura ao diferente, por um respeito pelo o outro enquanto pura exterioridade, por uma hospitalidade ao estrangeiro que vem de fora e é unilateralmente estranho. Mas por trás do respeito à diferença enquanto pura diferença esconde-se a completa indiferença ao outro, visto como puramente externo, estranho. Uma real hospitalidade exige uma real presença onde a essência de cada um constitui-se enquanto o evento do próprio encontro. Mas como no pós-moderno o conceito de essência foi abolido, o que sobra é a indeterminância de um ser lacunar que cultiva sua própria ausência. Esse traço de ser, esse resto indeterminado sempre desconfiado de qualquer forma de identidade por estar imunizado a chamada metafísica da presença, lida com a hospitalidade como um surfista de TV, saltando metonimicamente de um canal para o outro tão logo se sinta entediado, indiferentemente ausente àquilo que encontra, quando o que a hospitalidade clama é a presença de uma essência completamente aberta ao outro. Essa hospitalidade ao estranho é a própria essência da dialética, que é uma exterioridade íntima, uma diferença que determina a essência daquilo que diferencia29. “
NOTAS
1.ELIADE.M, Sagrado e Profano. São Paulo: Martins Fontes.1992.
2.ELIADE.M, ibid.
3.ELIADE.M, ibid.
4.ELIADE.M, ibid.
5.GIEGERICH.W, Matanças: O platonismo na psicologia e o elo perdido com a realidade. Disponível em http://www.rubedo.psc.br/Artigos/matancas.html.
6.GIEGERICH.W, ibid.
7.GIEGERICH.W, Neurosis of Psychology. New Orleans: Spring Journal Books, 2005.
8.ELIADE.M, ibid.
9.ELIADE.M, ibid.
10.CHEVALIER.J & GHEERBRANT.A, Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
11.ELIADE.M, ibid.
12.ELIADE.M, ibid.
13.GIEGERICH.W, Souls Logical Life. Frankfurt: Peter Lang, 2001.
14.ELIADE.M, Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes.2002.
15.GARCIA-ROZA.L, Palavra e Verdade: na Filosofia Antiga e na Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
16.ROHDEN.C, A Camuflagem do Sagrado no Mundo Moderno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
17.ELIADE.M, ibid.
18.TARNAS.R, Cosmos and Psyche. New York: Plume, 2006.
19.DODDS.E.R, apud HILLMAN.J, Re-Imaginar la Psicología, p.377. Madrid: Siruela, 1999.
20.ELIADE.M, Sagrado e Profano.
21.GIEGERICH.W, Technology and the Soul. New Orleans: Spring Journal Books, 2007.
22.GIEGERICH.W, ibid. Por isso o diabo enquanto negação de deus é reconhecido pelas patas animais que o liga a imanência terrena.
23.GIEGERICH.W, ibid.
24.JUNG.CG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p.221. Rio de Janeiro: Editora Nova Foronteira.
25.GIEGERICH.W, Once More “The Stone which is not a Stone”: Further Reflections on “not”. In: DOWNING.C (Ed.), Disturbances in the Field: Essays in Honor of David L.Miller (pp.127-141). New Orleans: Spring Journal Books, 2006.
26.GIEGERICH.W, Technology and the Soul.
27.ELIADE.M, ibid, pp.165-166.
28.DESMOND.W, A Filosofia e seus Outros: Modos do Ser e do Pensar, pp.176-177. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
29.O outro que constitui sua estranheza enquanto interioridade daquilo de que se diferencia é uma das maiores problemáticas atuais, que aparece na forma de enfermidades auto-imunes e doenças como aids e câncer, vírus computacionais, terroristas ocultos na população local, espionagem industrial, problemas com imigrantes, o caos intrínseco à organização do próprio sistema. Ver GIEGERICH.W, O Terrorismo Islâmico. In: ZOJA.L,WILLIAM.D (Eds.), Manhã de Setembro (pp.65-85). São Paulo: Axis Mundi, 2003.


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