DIALÉTICA DO SAGRADO –
por André Dantas
Depois de tanto tempo sem atualizar o blog voltei, trazendo um
texto muito bom e interessante de André Dantas que encontrei na Rubedo. Por
ser um texto complexo e longo, vou colocar em duas partes pra ser apreciado
sem pressa, vale a pena ler cada linha, eu gostei demais e recomendo.
” Todas as mitologias e religiões dividem o mundo em dois
domínios opostos, o sagrado e o profano. Se em algumas mitologias a distinção
entre o bem e o mal é inoperante, o mesmo não ocorre com aquela entre o mundo
sagrado dos deuses e o mundo profano do homem, que não só determina a
presença do sagrado numa cultura, como também a própria essência do sagrado e
por isso também a do profano. Os dois domínios são distintos e muitas vezes
hostis um ao outro, mas também fluem um no outro, visto que um pressupõe o
outro. A oposição entre os dois coincide com a distinção entre o que é real e
o que é irreal, entre o que “é” e o que “não é’, sendo por isso uma oposição
ontológica. O sagrado é valoroso, sólido, real, enquanto o profano pertence
ao domínio do não-ser e do irreal. Essa oposição entre ser (sagrado) e
não-ser (profano) organiza todo o cosmos mítico-religioso tornando possível a
cultura com seus ritos e mitos.
O mundo dos deuses opõe-se ao dos homens, pois o que é tido
como sagrado isola-se escapando dos limites da experiência profana,
realizando-se como negação do habitual e do comum. Isso ocorre porque para os
antigos o espaço não é homogêneo e indiferente, apresentando rupturas,
quebras, porções qualitativamente diferentes umas das outras. Há espaços
sagrados, consistentes, significativos e há outros não consagrados, sem
estruturas e por isso amorfos e inconsistentes. O sagrado só se manifesta ao
operar essa distinção e sua manifestação funda ontologicamente o mundo do
homem como um animal cultural. Essa oposição é contada recontada em milhares
de mitos sobre seres sobrenaturais que criaram um cosmos organizado a partir
do caos. Essa ordenação é representada como o surgimento de uma ilha, uma
atividade ou instituição que por pertencer ao espaço sagrado organiza e
estrutura o espaço profano ao seu redor. Qualquer ação, lugar ou tempo só
possui valor, sentido e realidade caso o sagrado tenha ali se manifestado,
pois ele confere significado e tudo que lhe escapa torna-se o lugar do não-ser,
do relativo, do não-sentido. O profano é neutro, arbitrário, possui grau zero
de significação e toda a ação se desenrola no sagrado que por ser intenso,
real e significativo, organiza e estrutura a indistinção profana. Graças
à mímesisda ação de um deus ou herói, os homens redimem o espaço
profano, pois os atos sagrados são os arquétipos de todas a ações
significativas realizadas pelos homens, por isso são realizados rituais
periódicos onde esses atos são repetidos para garantirem a coesão vital de toda
uma cultura2.
Eliade propôs o termo hierofania, cujo conteúdo etimológico
indica que algo de sagrado se revela, para expressar todas as formas de
manifestação do sagrado no profano, desde a mais elementar em uma pedra,
árvore ou animal até a encarnação de deus em Cristo. As histórias de todas as
mitologias e religiões constroem-se pelas acumulações de repetidas
hierofanias nas quais o sagrado e o profano unem-se na sua diferença.
Na hierofania não existe uma continuidade simples entre os
dois reinos, mas uma quebra que resulta da aparição de uma ordem diferente
que não pertence propriamente ao profano e que paradoxalmente se dá através
de objetos, plantas, animais, ações, instituições e pessoas que são partes
integrantes do mundo profano. A manifestação do sagrado opera uma ruptura
ontológica na medida em que aquilo que se revela se distingue das demais
presenças profanas. O sagrado atrai e causa temor sendo por isso cercado de
tabus que interditam certas pessoas e objetos devido ao perigo do contato. Por
ser ontologicamente distinto, o sagrado não participa pura e simplesmente do
profano, havendo uma série de regras a serem respeitadas quando se está em
sua presença. Quebrá-las é romper a diferença entre os dois reinos podendo
jogar perigosamente toda uma cultura no caos do não-ser. Tudo que é visível
pode transfigurar-se em hierofania, qualquer objeto, animal, planta, ofício,
gesto, função fisiológica, brinquedo, jogo ou dança pode ser veículo do
sagrado.4
O ritual é a ocasião onde a dialética sagrado-profano é revelada-criada,
pois todo ritual comporta uma forma de sacrifício (sacrum facere =
tornar sagrado). Tornar algo sagrado é sacrificá-lo, separá-lo não só daquele
que o oferece como também de todo o espaço profano, tornando o oferecido
inalienável, pertencente a uma esfera diferente que desperta temor e
fascínio. Na antiguidade, os festivais de celebração dos deuses atingiam seu
clímax em um sacrifício sangrento. A matança sacrificial era o alfa e ômega
do festival, pois a lâmina que cortava a carne animal era o “ligamentum” com
o espírito que tornava o dia festivo, sagrado. Um dos principais atos
religiosos era o derramamento de sangue, a queima das partes do animal e o
banquete comunal do sacrificado. As matanças sacrificiais eram realizadas ano
após ano regularmente em todos os tipos de ocasiões, e a principal tarefa dos
imperadores era a supervisão da correta realização dos sacrifícios, pois a
política não podia ser pensada separadamente deles, não havendo acordo,
juramento, guerra, contrato, casamento, cruzamento de fronteira, construção
de casa ou festivais sem a realização de sacrifícios. A matança de seres
vivos é a mais antiga e difundida forma de ato religioso.5
A caça praticada pelos primeiros agrupamentos de homo
sapiens não servia apenas para a aquisição de comida, mas possuía um
significado ritual de sacrifício. Como uma ação sagrada ela necessitava de um
espaço sagrado que se distinguia do cotidiano profano mediante vários ritos
de entrada, como abstinência sexual e isolamento dos membros do grupo
caçador. Após a caça, ritos dessacralizantes os traziam de volta ao mundo
profano. Para os antigos caçadores o animal abatido não era um puro alimento,
mas também um parente próximo, um irmão, um pai, e acima de tudo a forma
animal de um deus cultuado pelos caçadores.6
Não eram os homens que pura e simplesmente realizavam tal ato,
pois o ritual sacrificial mimetizava uma ação primordial realizada pelos
deuses. O que era sacrificado era a forma animal de um deus, mas se o ato
sacrificial repetia uma ação sagrada cosmogônica então os deuses faziam de
si-mesmo deuses ao matarem a si-mesmos enquanto animais para manifestarem sua
espiritualidade intrínseca. A matança sacrificial era o ato concreto de negar
logicamente o profano para abrir a passagem do sagrado no profano negado. O
golpe assassino do ato sacrificial é também a lâmina criadora de consciência
ao realizar a “separatio” do sagrado e do profano. Ele não atinge outro
indiferente, mas o próprio outro do homem, um outro que é ele mesmo enquanto
criatura puramente biológica, dando luz a um ser cultural que só existe
enquanto oposição viva entre sagrado e profano. A morte do animal é absoluta,
unidade negativa de si-mesma e do seu outro, vida. Essa dialética também
é essencial nos ritos iniciáticos. Iniciar é matar, provocar a passagem por
uma porta, uma saída que serve de entrada para um outro lugar. A iniciação
transpõe a passagem do profano para o sagrado e nessa passagem o iniciado
conhece sua real realidade ao sofrer uma transformação que o mata como ser
profano e o revive como ser sagrado. A morte iniciática é uma mudança de
estado, uma morte para realidade profana que ao mesmo tempo é o nascimento
para realidade sagrada. Esse novo nascimento conduz a um estado fetal, ao
útero cósmico que se apresenta no mundo profano como uma cova cavada na
terra, uma caverna, uma câmara secreta, a clareira de uma floresta, o
interior fechado de uma tenda ou o mergulho em águas batismais. É uma morte
lógica, absoluta, portanto uma afirmação plena da vida, pois o iniciado ao
experimentar essa morte-em-vida conhece a si-mesmo como ser mortal ao mesmo
tempo em que participa da eternidade. Essa morte da vida natural não é uma
morte natural, mas uma morte lógica que inicia o morto na vida lógica
intrínseca ao ser que é morte-em-vida ou vida-na-morte. O renascimento do
iniciado não é natural, mas cultural, a instituição da natureza cultural antinatural
do homem enquanto ser consciente. A iniciação ao permitir o iniciado
experimentar-se como estando ao mesmo tempo vivo e morto, cultiva a vida
lógica da alma como dialética entre os opostos. Nenhum animal tem
consciência da sua própria morte e por isso dormita na inconsciência,
enquanto o homem torna-se consciente ao acordar para morte, ao ser em vida um
ser-para-morte graças à lógica do sacrifício que diferencia o mundo em dois
reinos intercambiáveis. Morrer em vida era um pré-requisito essencial
para aqueles que conheciam o mundo dos espíritos. Os xamãs serviam de
intermediários entre o mundo profano e o sagrado porque experimentavam em
si-mesmos uma morte sagrada, uma negação profana que é a afirmação do
sagrado. Essa negação lógica é experenciada pelo xamã como se sua carne fosse
arrancada dos seus ossos, ou como um desmembramento. O que faz dela uma morte
iniciática é o movimento lógico de afirmação de outro mundo nesse mundo, que
torna o xamã uma porta viva de acesso ao mundo dos mortos. Por poder se
comunicar com os espíritos que governam a vida da tribo ele torna-se uma
dialética viva, um ser não apenas natural, mas lógico. Seu corpo profano é ao
mesmo tempo sagrado e por isso ele leva uma vida à parte do restante da
tribo, guardando certa distância da vida profana por mediar as forças que a
geram e ordenam. Estando em contato com esse núcleo gerador do profano ele renasce
como identidade-na-diferença entre sagrado e profano. Nem apenas um nem o
outro, mas a negação que os conecta ao afirmar o ser de cada um como o
não-ser do outro. Há toda uma série de proibições como comer certos alimentos
ou realizar certas ações que lembram constantemente o xamã de que mesmo
estando vivo ele não pertence apenas ao domínio profano, mantendo a
negatividade que impede que os dois domínios colapsem um no outro e gerando a
tensão necessária para consciência que liga-separa os dois modos de
ser. Não apenas os rituais de sacrifício e de iniciação, mas o ritual em
sua própria forma lógica é o ato onde sagrado e profano vinculam-se através
da negação que os revela-cria. Por isso o ritual era a forma primordial de
dialética executada pelos homens. Nos rituais onde os dançarinos usavam
as máscaras dos deuses, era visível que o mascarado não era apenas um membro
ordinário da comunidade, mas também um espírito, um demônio ou um deus. É
enquanto ser ordinário e profano que ele é a sua própria negação, pois esse
algo sagrado pertencente a outro mundo é a própria alma da tribo a qual o
dançarino pertence, o ser ao qual a comum-unidade deve sua existência
enquanto todo articulado. No ritual o dançarino mascarado articula a
identidade na diferença entre os dois reinos. A máscara por si é um objeto
profano confeccionado pela tribo, mas que se torna sagrado por ser a
explicitação da presença do sagrado no profano. Ao executar o ritual o
dançarino desaparece como ser profano por trás da máscara para expressar o
sagrado que se torna visível para toda a comunidade. O sagrado revelado é a
essência de toda a comunidade, incluindo o dançarino, o que implica que ele
oculta-se para presentificar aquilo que ele realmente “é”, pois ele é nele
mesmo algo que ele não é, o ser sagrado que presentifica-se ausentificando o
dançarino enquanto ser profano. Como membro da tribo o dançarino partilha a
ordinareidade com todo o mundo profano ao seu redor. Quando dança, é mais
intensamente ele ao ser negado, tornando-se um outro que dança através dele,
que o utiliza como um veículo na sua manifestação. Todos os rituais de dança
inclusive aqueles sem a presença de máscaras existem como essa dialética. A
máscara facilita a expressão de que aquele que dança não é mais o ser ordinário
conhecido pela comunidade, mas algo extraordinário. Por isso é comum o
dançarino não lembrar o que fez durante a dança já que ele não era ele mesmo,
mas um outro que só é quando ele não é. Esse outro que aparece é uma
aparência-essente, pois é a essência do dançarino e de toda a comunidade que
participa do ritual. A comunidade só é comum-unidade por fundamentar-se nesse
outro mundo que a gera e ordena. Por isso sua história é também a história da
criação do mundo pelos deuses. O dançarino quando dança explicita a
essência que faz da comum-unidade um todo articulado e não um mero agregado,
tornando-se assim um universal concreto, a união de si-mesmo e da essência do
todo ao qual ele pertence e que torna possível ele ser ele mesmo. No ritual
de dança é a negatividade lógica da vida que é explicitada e celebrada. O
dançarino é ele mesmo e também o espírito que o nega e que só aparece por
negá-lo, mas cuja negação afirma o próprio ser do dançarino enquanto
identidade dele mesmo e da comunidade da qual participa. Não há inflação da
personalidade porque o dançarino é possuído logicamente pelo espírito, não
identificando-se com ele de forma imediata. Essa possessão é lógica porque o
dançarino é negado enquanto ser natural para a afirmação do sobrenatural. O dançarino
não desaparece de forma natural, estando intensamente presente ao doar todo o
seu corpo apaixonadamente ao ritmo dançante para que o sagrado apresente-se
em toda a sua intensidade e possibilite o êxtase que sacraliza o profano.
Esse extase não é apenas uma intensidade emocional subjetiva, mas aquilo que
exterioriza o dançarino da sua estase no mundo profano para manifestação da
potência espiritual que se expressa por meio dele. Ele é transferido para outra dimensão que por sua vez é contratransferida
para a dele. O dançarino e o espírito trocam de natureza, intercambiando suas
realidades7.
Enquanto dança a personalidade profana do dançarino é
sacrificada em êxtase espiritualizando-se, enquanto o espírito materializa-se
limitando sua realidade a particularidade daquele momento específico. Para o
sagrado manifestar-se o dançarino precisa doar-se a sacralidade da sua dança,
sacrificando-se através de um abandono ao que ele não é para ser o que em
última essência é ele mesmo enquanto ser lógico dialético. Se ele se agarrar
a sua personalidade individual o movimento dialético não se presentifica. Quando
a dança acaba ele retorna a si exausto e continua a sua vida ordinária
renovado, pois enquanto seu corpo dançava em êxtase ele morria enquanto ser
profano renascendo em seu conceito, diferença-na-identidade de sagrado e
profano. Como se trata de um movimento, da passagem de um reino no outro, o
ritual precisa ser refeito em datas e situações específicas, de modo que a
vida profana se desenrola enquanto ecoa a vibração da música que harmoniza os
dois mundos. Como esse intercâmbio não é isento de perigos trata-se de uma
harmonia tensa, onde os espíritos precisam ser constantemente apaziguados. No
ritual o homem morre enquanto puro organismo animal renascendo enquanto
natureza espiritual, mas ele logo descobre que essa sobrenatureza pode ser
ainda mais feroz do que aquela que é negada. O sagrado e o profano
opõe-se dialeticamente, pois complementam-se a partir da sua negação. A
hierofania é a expressão da coexistência paradoxal do eterno e do fugaz, do
ser e do não ser, do espiritual e do material. A experiência religiosa só é
possível graças a “coincidentia oppositorum”, visto que o sagrado é
mediado pelo profano, só aparecendo numa realidade concreta histórica. O
sagrado é o totalmente outro do profano, seu ser é o não ser do profano, mas
que se manifesta no seio do próprio profano. Desde a manifestação do sagrado
numa pedra ou árvore, até a encarnação de deus em Cristo o que está em jogo é
a manifestação de uma ordem diferente em algo profanamente ordinário. Aquilo
que é sacralizado é cultuado porque torna-se outro nele mesmo. Uma pedra sem
deixar de ser pedra também é uma não-pedra, algo sagrado que aparece através
dela. Toda e qualquer parte integrante do mundo profano é suscetível de
tornar-se uma hierofania, pois o profano tem como fundamento o sagrado que
por sua vez só se manifesta graças ao profano. O sagrado tem de passar pelo
profano para revelar-se como sagrado e essa passagem é o que o torna sagrado,
pois ele se realiza sacralizando a realidade profana na qual se manifesta,
tornando-se um centro organizador da vida cotidiana em torno do qual
circuambula a vida cultural. Todas antigas culturas circuambulavam em torno
desses centros onde o profano veiculava o sagrado8.
A irrupção do sagrado destaca um território do ambiente que o
envolve tornando-o qualitativamente diferente. Ali se erige um templo que
servirá de morada e proteção às hierofanias, verdadeiros portais para os
deuses. Às vezes um sinal qualquer é suficiente para indicar a sacralidade de
um lugar, traçando uma orientação. Quando sinal algum manifesta-se nas
imediações, o homem provoca-o, praticando por exemplo uma “evocativo” com
a ajuda de animais que mostram o local suscetível de acolher o santuário.
Essa evocação pode ocorrer através da caça a um animal selvagem ou da
libertação de um animal doméstico que é perseguido e sacrificado no local
onde é encontrado. Ali levanta-se um altar e ao seu redor constrói-se um
santuário. Os homens não são livres para escolher o terreno sagrado, eles o
descobrem com a ajuda de sinais misteriosos9.
O templum era o setor celeste delimitado pela ágora
romana no qual se observava fenômenos naturais como a passagem dos pássaros,
e passando com o tempo a designar o edifício sagrado onde era praticada a
observação do céu. A palavra grega “temenos” provinda do mesmo
radical tem(cortar, delimitar, dividir), indicava o local reservado aos
deuses, o recinto sagrado que cercava um santuário10..
Um templo é a morada profana do sagrado, o lugar onde os
opostos convergem graças à rachadura na homogeneidade do espaço profano por
onde o sagrado penetra. Essa ruptura é um centro organizador, e o templo é um
microcosmo, no qual todo o macrocosmo é refletido. Dentro dele está o
santuário que é ontologicamente o seu centro gerador. O santuário é para o
templo o que este é para o cosmos, o local de condensação do sagrado que o
apresenta para o profano. Um templo sem santuário é algo sem sentido já que o
santuário é a alma do templo, o coração do seu corpo e do corpo cósmico como
um todo. Dele pulsa a energia sagrada que impulsiona todo o mundo profano. O
templo e seu santuário é um centro por situar-se na fronteira entre o sagrado
e o profano. Essa fronteira é centro em torno do qual circulava toda a vida
cultural dos antigos. A porta que abre para o interior do templo separa os dois
espaços e indica a distância entre os dois modos de ser, sagrado e profano. O
limiar é a fronteira que opõe os dois mundos e paradoxalmente o lugar onde
eles se encontram. A porta do templo e o seu santuário são um só, pois todo o
templo funciona como o local de passagem entre os mundos e o centro
organizador da vida profana. O templo é uma abertura que torna possível a
comunicação com os deuses, aonde eles veem ao homem e este vai a eles11.
Ao redor do templo são construídas as moradias humanas, pois
as culturas tradicionais se caracterizam pela oposição entre seu território
habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que as cerca. O primeiro é
um cosmos, um espaço organizado por meio da sacralização, enquanto além das
fronteiras situa-se o caos amorfo. A sacralização de um local, a elevação de
um santuário e a construção de um templo ao seu redor mimetiza em escala
microcósmica a criação arquetípica realizada pelos deuses, tornando possível
a estruturação de uma vida cultural separada da natureza exterior12.
A consagração que organiza o espaço é uma opus contra
naturam que completa a obra exemplar dos deuses, a ordenação do caos
primordial. Em termos existenciais isso requer que o ser humano diga não a
natureza animal que ameaça devorá-lo e afirme uma fronteira entre o espaço
cultural que habita e o mundo natural. O templo lembra-o constantemente dessa
separação ao conectá-lo com a origem dela, os deuses criadores da humanidade.
O santuário é então uma imagem reflexa da natureza dupla do homem, ser profano
e sagrado, cultural e animal. O santuário não é um centro espacial, e sim um
centro ontológico não tendo por isso um local fixo. Cada templo e cada local
onde um ritual é celebrado torna-se um omphalos, o umbigo do mundo. Sem
esse centro onde o vertical e o horizontal se encontram, não haveria rituais,
templos ou oráculos13.
O objeto em que se manifesta o sagrado torna-se outro sem
deixar de ser ele, pois algo é sagrado exatamente pelas qualidades
específicas que o caracterizam enquanto objeto profano. Uma pedra é sagrada
por causa da sua permanência, da sua dureza, da sua resistência às
intempéries do tempo. Um animal é sagrado por sua beleza, ferocidade,
agilidade, por poder voar ou nadar habilmente, por sua maternidade exemplar
ou esperteza. Ser sacralizado é tornar-se lógico, ser em si-mesmo seu outro.
Logo as religiões que veneram a natureza são sobrenaturais, porque seu alvo é
o que está além da natureza e que se revela no modo de ser da própria
natureza. No ciclo de morte e renascimento onde o inverno é sucedido pela
primavera, a natureza que parecia morta se renova para reiniciar uma passagem
que parece eterna em seu próprio movimento. Cada cultura particular
expressa de forma específica essa dialética entre sagrado e profano. O que é
universal é a própria forma lógica da manifestação. O profano nega a si-mesmo
ao manifestar o sagrado, que por sua vez nega-se ao travestir-se de profano,
limitando-se aquela realidade específica. A diferença ontológica entre os
dois é paradoxalmente mantida através da dissolução de um no outro permitindo
ao sagrado esconder-se nas árvores, pedras e rios profanos. O ser sagrado é a
sacralização do profano que por sua vez conduz a uma laicização do sagrado.
Os dois processos são co-extensivos, constituindo um único e mesmo movimento
auto-contrário que sacraliza o laico e laiciza o sacro. Aquele que penetra na
esfera sagrada depara-se sempre com significações profanas e vice-versa. Uma
realidade extraordinária e trans-Histórica realiza seu ser historicizando-se,
limitando-se a esfera ordinária do cotidiano14.
Na antiga Grécia os poetas revelavam através de uma epifania a
verdade passada que é fonte da atualidade, enquanto o profeta enxergava o
futuro que ainda ocultava-se no horizonte. A diferença entre o poeta e o
profeta não se devia simplesmente às suas características pessoais, mas aos
deuses que eles intermediavam. Ambos desvelavam a verdade por estarem
inspirados, cheios de deus, mas enquanto no profeta falava a voz de Apolo, no
poeta fala a de Mnemósyne, deusa de memória e mãe das musas. A função da
memória dada ao poeta por Mnemósyne não se refere à lembrança de um passado
histórico, não dizia respeito ao tempo cronológico, mas a uma outra dimensão
do cosmos cujo acesso lhe era permitido para que retornasse ao mundo profano
e cantasse a realidade primordial. Exatamente por isso Mnemósyne conduz ao
esquecimento do tempo presente. O consultante do oráculo de Lebadeia era
conduzido a beber de duas fontes que estavam na sua entrada, a de Lethe e a
de Mnemósyne. Esquecendo do tempo profano o poeta esquecia temporariamente
sua pertença à raça de ferro, que era o estado temporal de miséria, cansaço e
angústia vivido pelos gregos na época, para lembrar a todos que os ouviam das
fontes sagradas de onde brotaram todo o mundo profano. Através da negação da
sua realidade profana o poeta acessava o sagrado de onde originou-se o mundo.
As águas de Lethe levavam ao esquecimento da vida humana essencial no acesso
ao sagrado, enquanto as águas de Mnemósyne mantinham a lembrança de tudo que
o poeta iria ver e ouvir no outro mundo15.
Ao complementarem-se na sua oposição as fontes são imagens da
lógica que por meio da negação da realidade profana permite ao poeta tornar
seu canto uma hierofania, uma manifestação do sagrado, do tempo Èon dos
deuses onde originou-se tudo que existe no tempo cronológico profano. A
verdade imortal é ao mesmo tempo o canto de uma criatura frágil submetida à
miséria, dor e angústia típicas da fugacidade dos seres mortais. O
sagrado só existe como negação do profano, mas essa negação institui o mundo
profano como tal, criando-o como algo definido e determinado ao ordená-lo. Ao
mesmo tempo o mundo profano criado pelo sagrado torna o profano possível ao
servi-lhe de receptáculo, permitindo que ele se manifeste. Se não houvesse um
mundo profano para negar não haveria o sagrado, pois essa negação lhe é
imanente. Por ser o que é somente através do profano, o sagrado sofre uma
limitação a partir dele mesmo, sendo isso que constitui uma hierofania, a
passagem de um no outro que coagula os limites um do outro ao dissolvê-los.
Na hierofania o profano coagula sua identidade, delimitando-se ao transgredir
sua limitação apontando para um além. Uma pedra não deixa de ser pedra ao
sacralizar-se, mas sendo precisamente uma pedra dissolve sua fixidez
apontando para além das fronteiras profanas, tornando-se por si-mesma uma
apresentação do sagrado. O profano é um mundo invertido, onde algo é venerado
por ser um outro além de si em si-mesmo. Essa inversão é o sagrado
travestindo-se de profano, vestindo uma roupagem natural que o camufla nas
árvores, pedras, rios, animais. Ao vestir-se de profano o sagrado não apenas
se esconde como também se revela, sendo essa tensão de contrários algo
imanente à vestimenta enquanto hábito, que indica tanto o vestuário quanto um
estado ou condição, como é o caso dos trajes utilizados por frades, padres e
freiras. O ato ambíguo de se vestir, tanto vela como desvela, pois o
vestuário esconde e revela uma condição16.
A vestimenta é um ato primordial de cultura. A instituição de
condições especiais que exigem vestimentas adequadas rompe a homogeneidade da
vida natural. Vestir-se é diferir da condição natural, sair do éden, forjar
uma nova natureza. Antes da vestimenta o que havia era uma pura imediatez animal,
o corpo nu e inocente da natureza. A vestimenta ao interpor-se entre o corpo
e a natureza os separa e os estabelece como realidades distintas. Essa
mediação cria-revela a cultura e natureza, pois antes dela o que havia era um
todo contínuo, amorfo e indistinto. Algum animal sabe o que é a natureza? Ele
apenas a vive irrefletidamente, não constituindo ela um problema para ele,
pois sua relação com ela não é questionada. Por não refletir sobre a morte o
animal não conhece a vida, apenas a age cegamente de acordo com seus impulsos
instintivos. A lógica do real que nele age dorme o sono inocente da vida
natural. A vestimenta profana revela o sagrado como um véu que ao cobrir
um corpo delineia sua forma, a extensão dos seus braços e pernas, os volumes dos
quadris, o tônus do tórax. Esse delinear define o sagrado coagulando-o numa
forma. Sem isso ele seria informe e como é próprio dele ordenar o caos
informe profano, ele contraria sua natureza eterna naturalizando-se. É
precisamente por camuflar-se no profano que o sagrado se manifesta e graças a
isso os antigos não viviam num mundo opaco e inerte, sendo sempre
confrontados e seduzidos com o mistério de uma natureza que ao se camuflar
desvela-se como sobrenatural. Essa camuflagem constitui a essência do sagrado
que, ao aparecer, nega a si-mesmo como eterno e imutável. Em cada cultura o
sagrado traveste-se de maneira diferente, adquirindo as formas e coloridos
específicos da sua vestimenta. O que caracteriza e diferencia uma cultura
antiga da outra é fundamentalmente a vestimenta utilizada pelo sagrado, algo
de uma importância tal que leva uma cultura a guerrear com a outra para
impor-lhe seus costumes específicos. Isso ocorre porque a própria identidade
cultural constitui-se como uma persona do sagrado. Longe de ser aquilo que
apenas impede a manifestação do sagrado, o profano é o meio por excelência da
sua manifestação, pois aquilo que é fantástico, extraordinário só aparece sob
a máscara do ordinário e banal. O sagrado não aparece somente através do que
é incrível e espetacular, pois mesmo a existência mais pálida e sem brilho
pode servir de palco para uma hierofania17.
No mundo mítico o brilho dos deuses irradiava-se dos próprios
fenômenos que lhes eram consagrados. Na antiga Grécia a palavra théos,
não era utilizada do mesmo modo que no monoteísmo judaico-cristão que
primeiro afirma a existência de deus para então enumerar seus atributos
dizendo por exemplo, que deus é bom,
que é amor e assim por diante. Na Grécia a palavra deus brotava do impacto
causado por um fenômeno, que os impressionava ao ponto de afirmarem por
exemplo que o amor é um deus, ou a guerra é um deus, pois são mais que
humanos, não estando sujeitos a morte ou envelhecimento. Qualquer evento que
escapa ao controle do homem é potencialmente um deus18.
Quando olhamos para as paixões e vícios dos antigos deuses que
faziam dos fenômenos naturais seu local predileto de manifestação, tem-se a
impressão que eles eram mais próximos dos homens do que o deus transcendente
do monoteísmo. Mas mesmo com suas paixões e intimidade com a natureza, os
deuses guardavam uma estranheza fundamental com o mundo dos homens. Mesmo
quando se apresentavam nas chuvas, nos mares, mesmo que participassem
ativamente dos assuntos humanos, das guerras, casamentos, da política, eram
como divindades que atuavam, conservando um distanciamento que definia sua
substância sagrada como negação da profana.
Aristóteles nega que possa existir philia entre o
homem e Deus, porque a disparidade entre eles é demasiado grande; e (…) um
dos seus discípulos observa que seria excêntrico (atopon) que alguém
proclamasse seu amor por Zeus. De fato, a Grécia clássica carecia de palavras
para expressar tal emoção: o termo philotheos (amor a Deus) aparece
pela primeira vez no final do século IV e os autores pagãos raras vezes o
empregam19.
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” Enquanto antigamente o homem só se considerava verdadeiramente humano
por mimetizar um modelo transumano, o homem moderno se reconhece humano na
medida em que não apela para nada além de si. Para o primeiro interessava
somente o mito, a história sagrada enquanto narrativa arquetípica que provê
modelos típicos de comportamento, enquanto o segundo constrói sua própria
história como narrativa do progresso, da superação do antigo onde o sagrado
torna-se um obstáculo à sua liberdade. Se para o primeiro era a manifestação
do sagrado que tornava esse mundo algo real, o segundo dessacraliza o mundo
para conhecê-lo objetivamente. Tendo retirado os seus trajes sagrados ele se
reconhece como o único sujeito agente da história, recusando qualquer apelo à
transcendência20.
Tal dinâmica é o resultado do próprio cristianismo no qual deus, ao
transcender a natureza, tornou-se tão inatingível para o homem que sua
existência foi posta em dúvida. Mas essa é apenas uma parte da história. A
outra é que esse arrancar-se violento da natureza é o que possibilitou a
encarnação humana de deus. Para compreendermos melhor esse movimento lógico,
precisamos retornar ao velho testamento onde estão as origens da religião
cristã para flagrar o momento bíblico onde deus nega a si-mesmo enquanto
fenômeno natural. Esse momento é o êxodo dos judeus do Egito, que enquanto
povo escolhido não podia mais compartilhar a sacralidade natural dos egípcios
e seus deuses com cabeças animais. Moisés sob o comando de Yaweh retira o seu
povo dessa nação profana e os conduz através do deserto em direção à terra
prometida. Durante esse êxodo há um momento crucial onde os dois mundos
colidem. Um situa-se nas terras baixas, caracterizando-se por um deus que
aparece em uma forma animal feita de metal e cultuado através de oferendas. O
outro mundo é o pico da montanha, regido por um deus invisível e
transcendente com um código moral de leis gravado em tábuas de pedra. O
encontro dos dois se dá com um Moisés inflamado pela ira divina do deus da
montanha acabando com a celebração em honra ao deus do bezerro de ouro. O
episódio encerra-se com Moisés forçando todos a uma decisão, ao perguntar
quem está do lado do senhor e comandando esses a pegarem suas espadas e
matarem os discípulos do deus do bezerro de ouro.
O bezerro representado na imagem refere-se a uma antiga representação
taurina de Yaweh. Isso significa que o que ocorreu na passagem bíblica não é
um culto a um deus estranho, uma infidelidade rebelde. O que a narrativa
personifica é uma transformação na imagem de deus, no modo como o sagrado
relaciona-se com o mundo profano. Nas antigas religiões politeístas
encontram-se vários deuses antropomórficos junto a animais que os servem,
deidades em forma humana mostradas com os pés descansando em touros. Havia na
antiguidade tardia um culto no qual um trono vazio era erigido para convidar
uma deidade invisível a tomar posse dele. A imagem do bezerro de ouro pode
ser compreendida como algo similar, uma estátua que servia de pedestal
erigido para convidar o deus invisível a descer das suas alturas21.
As primeiras divindades da cultura humana possuíam formas naturais,
eram plantas, o vento, uma montanha, o trovão, um rio, ou determinado animal.
Com o tempo uma diferenciação foi ocorrendo e os deuses deixaram de ser os
próprios fenômenos tomando-os em sua posse. O deus não era mais idêntico ao
trovão, ou a chuva, e sim aquele que os controla, não é mais a montanha, mas
aquele que a fez ou que a governa do seu cume. O animal tornou-se então um
aspecto inferior do deus que agora possui uma forma humana ou tornou-se
invisível. Mas mesmo como pedestal ele ainda é parte da divindade, sua
fundação no mundo profano que possui o poder de trazer o deus superior pra as
terras baixas graças a conexão íntima que mantém com ele. Contudo o deus de
Moisés arrancou-se da sua base animal em seu impulso para as alturas. A
espada de Moisés não apenas massacrou os adoradores do bezerro como também
cortou o vínculo que unia deus e suas patas taurinas22.
Através desse corte Yaweh abandonou de vez sua visibilidade tornando-se
completamente invisível. Mesmo que em sua antiga forma ele já o fosse, ainda
assim possuía visibilidade na forma do pedestal taurino que transparecia a
necessidade de uma imagem animal visível que o tornasse presente. O touro, a
antiga manifestação do sagrado em seu contrário, perde sua qualidade
hierofânica dessacralizando-se junto com toda a natureza. Deus agora
apresenta-se apenas na fé e na pregação da sua palavra. Os antigos deuses
politeístas não eram puros criadores extra-mundanos do mundo, mas também
aspectos dele, exibindo suas qualidades divinas através das qualidades
naturais: na fertilidade trazida pela chuva, no calor irradiado pelo sol, no
poder destrutivo de um vulcão23.
Yaweh está além de tudo isso, transcendendo a natureza, ele a olha de
fora como uma ferramenta criada por ele e utilizada para demonstrar o seu
poder. Exteriorizando-se radicalmente da natureza Yaweh adquire a
possibilidade de ser um deus único e universal. Enquanto permanecia atrelado
a sua imagem taurina ele era um entre muitos, já que além do touro havia
muitos outros animais, havia também o sol, os rios, o mar e toda uma
multiplicidade de fenômenos naturais, cada um irradiando o brilho de um deus
específico através das suas qualidades particulares. Enquanto se manifestasse
numa imagem particular ele seria parte de um panteão de deuses. A rejeição da
naturalidade e sua ascensão às alturas transcendentes é também o nascimento
de deus enquanto verdade universal. Religiões politeístas não conseguem conceber
tal espécie de universal, pois nelas os deuses estão presentes enquanto
fenômenos diferenciados entre si que particularizam os deuses por meio dessas
diferenças. A perda da concretude natural é o preço pago por Yaweh para
ganhar uma idealidade universal. Sua manifestação não ocorre mais em lugares
e fenômenos naturais específicos e a palavra revelada pelos seus
propagandeadores tornou-se o veículo hierofânico da sua natureza antinatural.
A perda da concretude natural torna necessária a fé, a crença nas palavras
propagandeadas para fazê-lo real. Deuses politeístas não requerem fé, suas
manifestações particulares falam por si. O deus do trovão, o deus da guerra,
a deusa do amor não necessitam de fé para serem reais porque eles estão na
guerra, no trovão, no amor expondo a todos os presentes o seus poderes. Por
isso quando Jung perguntou a Ochwiay Biano, um índio Pueblo cuja tribo
cultuava o sol, se sol era uma bola de fogo criada por um deus invisível, ele
respondeu: “O Sol é Deus; todos podem ver isso!”24.
Deus está no próprio fenômeno, todos podem vê-lo, isto é, todos que
compartilham da tradição que o cultua. Tal tradição é profundamente enraizada
no solo geográfico onde floresce, constituindo uma segunda natureza que é a
natureza antinatural a que chamamos cultura. Por isso cada cultura privilegia
determinados fenômenos em detrimento de outros devido à importância que
possuem para o local específico onde está enraizada aquela tradição. Para uma
o rio que abastece sua agricultura é um deus, já outra na qual o rio não
desempenha papel relevante não cultua um deus dos rios podendo em vez disso
cultuar um deus da montanha que estende-se soberano, impondo respeito pela
beleza da estabilidade que expõe aos que moram sob a sua sombra. Uma cultura
que floresce nas neves não possui um deus da montanha, mas cultua um deus das
neves por esse fenômeno determinar todo o seu modo de viver. Esses fenômenos
naturais hierofânicos são centros ontológicos para esses povos, neles estão o
eixo onde sagrado e profano passam um no outro, doando concretude ao sagrado
que ordena o profano antes amorfamente caótico, ao batizá-lo com os padrões e
modelos primordiais.
Para as religiões politeístas o mundo que se estende para além das suas
fronteiras é o lugar do caos amorfo. Estando sob a tutela do sagrado que se
manifesta na natureza, o tempo para eles é o tempo sagrado da natureza em seu
eterno retorno. Tendo como modelo arquetípico as estações do ano, o
florescimento e frutificação das plantas, os ciclos lunares, o fluxo das marés,
o ritmo da menstruação e do cio animal, esse tempo circular gira ao redor do
encontro do sagrado com o profano e situa-se em oposição ao tempo linear
cronológico, essencial no desenvolvimento da noção de progresso. Nesse tempo
circular todas as ações significativas foram executadas pelos deuses, logo
todas as grandes ações humanas são repetições dos arquétipos divinos.
Uma religião monoteísta na qual deus está fora da natureza tornou-se
possível em um povo marcado pelo nomadismo. Sem raízes em um território
específico o acesso ao sagrado não dependia tanto de fenômenos naturais
particularmente importantes para sua sobrevivência. Eles não tinham uma
montanha ou rios específicos, pois mudavam constantemente de local. Para tal
cultura o melhor acesso ao sagrado é a palavra, a narrativa da sua própria
história enquanto povo escolhido, contada pelos sábios, que lhes fornecia um
senso de coesão, ordem e unidade que outros povos tinham como evidentes por
estarem expostos aos mesmos fenômenos naturais regularmente.
Para os judeus a palavra é a sua terra sagrada, a raiz e a copa que
comunicam o céu e a terra, o sagrado e o profano, deus e os homens. Isso não
quer dizer que locais e objetos concretos não possuíssem nenhuma aura
sagrada. O templo de Jerusalém e a arca da aliança onde estavam os dez
mandamentos irradiavam o brilho sagrado. Deus não proibiu toda e qualquer
imagem profana, apenas a adoração de imagens naturais. O que ocorreu não foi
a total exclusão desse mundo, pois um deus que não se manifesta no profano
não é sagrado, visto que um só é através do outro. O que aconteceu foi a
intensificação da oposição entre sagrado e profano, uma maior diferenciação
entre as duas formas de ser que clareou a natureza antinatural da cultura que
no politeísmo ainda não era tão evidente. A desnaturalização de deus fez das
obras culturais humanas o lugar por excelência de hierofania. A
desnaturalização divina também intensificou sua humanização e, portanto, a desnaturalização dos seus discípulos. Mas
essa opus contra naturam não estaria completa enquanto o deus
universal fosse o deus particular de um povo específico, cujos membros
ligavam-se entre si por laços naturais de consaguinidade, e cuja descendência
se dava pela linhagem materna. Para ser realmente universal deus não podia
ser exclusivamente judeu e o cristianismo impulsionou ainda mais longe sua
contranaturalidade. Cristo radicalizou o trabalho de Moisés e suas palavras
cortaram ainda mais fundo os laços do homem com a natureza. No capítulo
quatro do evangelho de João há um exemplo notório desse corte. Trata-se da
passagem que mostra Jesus conversando em uma fonte com uma samaritana.
- Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais prestavam culto neste monte;
vós, ao contrário, dizeis que em Jerusalém que se deve prestar culto.
Jesus lhe diz:
- Crê em mim mulher. Chega a hora em que nem neste monte nem em
Jerusalém se prestará culto ao Pai. Vós prestai culto ao que desconheceis,
nós damos culto ao que conhecemos; pois a salvação procede do judeu. Mas
chega a hora, e já chegou, em que os que prestam culto autêntico prestarão
culto ao Pai em espírito e de verdade. Tal é o culto que o Pai procura. Deus
é Espírito, e os que lhe prestam culto haverão de fazê-lo em espírito e de
verdade. (Jo 4.9)
O que está em questão é o local específico de adoração. A montanha e
Jerusalém são entidades positivas, positividades, locais visíveis no mundo
real, pode-se apontar o dedo para elas afirmando que ali estão. Essa forma de
hierofania é característica de religiões tribais, e a referência aos pais
transparece a ligação étnica com a tradição de um grupo. Toda religião étnica
possui seus lugares sagrados localizados no espaço geográfico26. O que para
uma pode ser um lugar sagrado de culto, pode não ser para outra, e quando as duas
guerreiam esses locais são alvos privilegiados de ataque, pois cada local põe
em questão a sacralidade do outro, constituindo-se enquanto alternativas (ou
um ou o outro) e por isso sua destruição indica a superioridade de um sobre o
outro provando qual dos dois é verdadeiramente sagrado.
Essa forma de culto diferencia sagrado e profano segundo uma lógica
extensiva, este local é sagrado, aquele não é. O que Jesus faz é negar essa
concepção extensiva de sagrado, pois ao negar ambas as alternativas
tradicionais de culto o que é posto em questão é a concepção espacial de
religião. Não há um topos privilegiado de acesso ao sagrado, o que não
significa que não haja um local de culto, há, mas se trata de um não-local.
Cristo nega a noção espacial de sagrado, reafirmando-a de um modo mais sutil e
refinado. Não é que não haja mais lugares sagrados e sim que qualquer lugar
torna-se sagrado se ocorrer nele um culto a deus no espírito. Do mesmo modo
que os alquimistas falavam de uma pedra que não é uma pedra, (lithos ou
lithos) estamos diante de um lugar que é não é um lugar (topos ou topos). Não
se trata de uma negação unilateral que joga tudo na indeterminação pois, Cristo não está negando a realidade do
sagrado, mas afirmando sua não restrição a um local específico. Trata-se de
uma negação absoluta que espiritualiza a noção de lugar e localiza o espírito
na realidade. Apenas se as propriedades extensivas do sagrado são negadas é
que o espírito universal se efetiva concretamente. As antigas religiões não
concretizavam o universal de um modo tão efetivo quanto o cristianismo visto
que restringiam o sagrado a locais positivos específicos.
Mas o que o é o espírito a que Cristo se refere? Ele fala que como deus
é espírito a adoração a ele deve ocorrer no espírito e na verdade. “Deus é
espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade”
(Jo 4.24). Se deus é espírito e a adoração à ele ocorre no espírito, então a
adoração à deus ocorre nele mesmo. Deus adora a si-mesmo através da adoração
do homem, portanto humaniza-se. O homem adora deus no espírito, em espírito,
como espírito, ou seja, torna-se ele mesmo espírito, diviniza-se. O espírito
referido aqui é o espírito santo, o processo ourobórico de
diferenciação-identificante. Quando Cristo afirma que carrega a espada que
separará pai e filho, é o vínculo sanguíneo característico das religiões
étnicas que sua espada se dirige.
Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada.
Vim tornar inimigo um homem com seu pai, uma filha com sua mãe, uma nora com
sua sogra, e os inimigos de uma pessoa são os de sua casa. Quem amar seu pai
ou sua mãe mais que a mim, não é digno de mim, quem amar seu filho ou sua
filha mais que a mim, não é digno de mim. (Mt 10.34)
O espírito não está vinculado a nenhum local característico de uma
tribo. O cristianismo aspira a universalidade, a religação não de um povo
específico mas de todos os particulares com o verdadeiro universal. Por isso
ele precisa cortar os laços sanguíneos, diferenciando-se das religiões
fundamentadas em parentescos. Não há mais santuários, templos, montanhas ou
objetos sagrados, e as igrejas são apenas edificações profanas, locais de
reunião, o que não quer dizer que não haja mais locais sagrados e sim que
qualquer local pode tornar-se sagrado se deus estiver presente no espírito e
na verdade. “Onde dois ou três estiverem reunidos juntos em meu nome, eu
estarei entre eles” (Mt 18.20). O nome em torno do qual ocorre a reunião é o
espírito santo, que não é uma imagem específica, um conteúdo particular, mas
um processo autocontrário de humanização de deus e divinização do homem.
Os antigos deuses politeístas também assumiam forma humana. Zeus
assumindo a forma de Amphytrião para seduzir sua esposa Alkmene e Atena
aparecendo a Telêmaco como Mentes, um amigo de Odisseu, são alguns exemplos.
Mas são deuses particulares disfarçados de humanos particulares. No
cristianismo é toda a substância divina, todo o poder sagrado universal que
renasce em forma humana. O que antes aparecia sob uma multiplicidade de
imagens torna-se um único processo, radicalizando a oposição complementar
entre sagrado e profano. Deus não é mais visível, pois não pode mais ser
acessado como um conteúdo semântico entre outros. O que o cristianismo impõe
radicalmente à consciência é o nível da sintaxe, a forma lógica enquanto
processo dialético, que insinua-se bem mais explicitamente do que nas
mitologias politeístas embora ainda esteja por demais imerso em
personificações particulares.
Graças à encarnação o ser humano adquiriu um novo status, uma dignidade
até então inédita no mundo antigo, tornou-se o santuário de deus, o
responsável pela sua presença no mundo. Livre das amarras naturais e
investido com uma nova força ele pode agora olhar a natureza de fora e
utilizá-la como ferramenta para a manifestação das suas ideias. Tendo perdido
o seu lugar junto à natureza, ele se tornou utópico, buscando tornar visível
no mundo seus ideais invisíveis. Mas uma novidade tão radical assim não é
compreendida de imediato pela massa de fieis. A encarnação enquanto processo
ocorreu lentamente ao longo do Éon cristão, fermentando no coração
dos crentes e impulsionando todo o projeto cultural ocidental.
Tendo abdicado de uma manifestação cultural palpável, a questão da
existência de deus tornou-se um problema para os cristãos. Acreditar pura e
simplesmente na superficialidade das imagens presentes nas palavras dos
propagandeadores do Cristo não garante a encarnação divina, sendo necessário
dedicar a deus aquilo que o homem tem de mais humano e que o diferencia de
todos outros seres, sua sabedoria. Assim na primeira metade do Éon cristão,
a existência divina tornou-se a questão central para o homo sapiens.
Essa época foi permeada pelo escolasticismo, onde os cristãos foram à
escola para aprender sobre a natureza antinatural de deus. Nessa fase
dominada pelo peixe ascendente o homem, contra todas as suas necessidades
práticas, negou sua natureza carnal para dedicar-se à transcendência divina.
Todos os desenvolvimentos pagãos caíram no obscurantismo devido o foco de
atenção ter se voltado completamente para a revelação cristã. É como se
tivesse sido necessário abrir mão de toda a riqueza pagã para se dedicar ao
novo tesouro que tinham nas mãos. Apenas os conteúdos pagãos que poderiam
ajudar na purificação do tesouro cristão foram valorizados, como foi o caso
da filosofia aristotélica que serviu de base para o escolasticismo26.
No renascimento o tesouro pagão foi retomado em busca dos conteúdos
necessários para trazer deus a esse mundo, foi o início do humanismo. Se na
idade média o primeiro peixe ascendia espiritualizando o homem, o
renascimento de deus no homem foi impulsionado pelo segundo peixe que elevou
o valor do homem perante o divino. Nesse período as obras de diversos
pensadores abalaram o domínio dogmático exercido pela igreja. Mas apesar do
aspecto inovador muito desses pensadores não eram ateus, para eles a natureza
havia sido criada por deus para ser conhecida e admirada pela inteligência
humana. Graças à capacidade de criar fórmulas e instrumentos eficazes, essa
inteligência podia acessar a ordem que governava o movimento das coisas
terrestres e celestes. Essas fórmulas e instrumentos não são estáticos e cada
geração continua o trabalho da outra, questionando e complexificando as
produções dos seus antecessores.
Esses avanços permitiram ao homem conhecer os mais recônditos refúgios
da natureza e em nenhum deles detectou-se a menor presença do criador
supremo. A cada nova descoberta o homem avançava no controle da natureza,
reestruturando-a de acordo com as suas conveniências. Se no começo o
intelecto humano era considerado um presente divino, tendo sido criado à sua
forma e semelhança, com o tempo ele assumiu o lugar o seu criador. O homem
não olha mais a natureza admirado com o poder criador da inteligência divina,
mas se encanta com sua própria capacidade de transformar a natureza de acordo
com sua vontade.
Se a inteligência humana vasculhou o universo e não encontrou o menor
sinal de deus onde ele estava então? “Na mente humana” foi a resposta
encontrada. O homem não consegue encontra o seu criador porque ele é uma
criação sua, uma projeção de algo que lhe é interno no mundo exterior da
natureza. A situação se inverteu, a criatura subiu no trono vazio do criador
transformando-o numa projeção da sua necessidade de ordem e significado.
Nesse início de milênio a era de peixes chegou ao seu final, a encarnação se
completou e o cristianismo realizou seu escopo.
O sagrado sempre se mascarou nas realidades profanas, mas no mundo
moderno essa camuflagem assumiu sua forma mais radical. Procurar o sagrado
extensivamente na forma de algum conteúdo específico como eram as imagens
míticas dos deuses é a melhor forma de não encontrá-lo. A consciência
coletiva não é mais informada pela mesma relação que a consciência mítica
mantinha com a natureza. O cristianismo potencializou a desnaturalização da
substância sagrada, abstraindo-a de qualquer conteúdo particular específico e
revelando o que ela era em sua essência, um movimento dialético. O resultado
foi a profanação do sagrado, seu mergulho nas profundezas do secularismo
humano.
O homem pós-moderno afirma a ausência de deus porque não o encontra nos
lugares que ele deveria estar, nem se reveste das formas que supostamente uma
divindade deveria vestir. A passagem do sagrado ao profano foi tão intensa
que ele agora se manifesta no que há de mais cotidiano, naquilo que é tão
banal que aparentemente nada tem a revelar. É no corriqueiro que se pode
reencontrá-lo, pois é lá ele se oculta. Depois da encarnação a manifestação
do sagrado tornou-se quase irreconhecível.
O homem moderno a-religioso assume uma nova situação: reconhece-se como
o único sujeito e agente da História e rejeita todo apelo à transcendência.
Em outras palavras, não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição
humana, tal como ela se revela nas diversas situações históricas. O
homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na
medida em que dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência à
sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio quando estiver radicalmente
desmistificado. Só será verdadeiramente livre quando tiver matado o último
Deus. Não nos cabe discutir, aqui, esta tomada de posição filosófica.
Constatemos somente que, em última instância, o homem moderno a-religioso
assume uma existência trágica e que sua escolha existencial não é desprovida
de grandeza. Mas o homem a-religioso descende do “homo religiosus” e,
queira ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir de situações
assumidas por seus antepassados. Em suma, ele é o resultado de um processo de
dessacralização. Assim como a “Natureza” é o produto de uma secularização
progressiva do Cosmos obra de Deus, também o homem profano é o resultado de
uma dessacralização da existência humana. Isto significa que o homem a-religioso
se constitui por oposição ao seu predecessor, esforçando-se por se “esvaziar”
de toda religiosidade e de todo significado transumano. Ele reconhece a si
próprio na medida em que se liberta e se “purifica” das “superstições” de
seus antepassados. Em outras palavras, o homem profano, queira ou não,
conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas
esvaziado dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não
pode abolir definitivamente o seu passado, porque ele próprio é produto desse
passado. É constituído por uma série de negações e recusas, mas continua
ainda a ser assediado pelas realidades que recusou e negou. Para obter um
mundo próprio, dessacralizou o mundo em que viviam seus antepassados; mas,
para chegar aí, foi obrigado a adotar um comportamento oposto àquele que o
precedia – e ele sente que este comportamento está sempre prestes a
reatualizar-se, de uma forma ou outra, no mais profundo de seu ser27.
Quanto maior a altura atingida por deus, maior a sua queda, e o deus
cristão ao atingir a mais alta transcendência caiu na mais profunda imanência
cotidiana. Enantiodromicamente é nela que agora estão os mistérios. Os
alquimistas já intuíam que para encontrar o espírito divino na matéria deviam
procurar naquilo que está à vista de todos e que exatamente por isso não é
reconhecido. Mas o homem pós-moderno ignora a camuflagem do sagrado nas
atividades profanas, pensando estar realizando ações que nada tem a ver com o
transcendente, tornando-se um espectador entediado e impaciente de uma
existência que se desenrola em meio a uma banalidade opaca e sem sentido. Se
antes o impulso sexual-agressivo era vítima da repressão religiosa, hoje a
situação se inverteu, sendo a sacralidade considerada um mero disfarce para a
imanência humana, tornando-se vítima da mesma repressão de que antes era
acusada. Por isso Eliade posicionou-se na contramão de Marx e Freud que
desmascararam o inconsciente social e pessoal nos fenômenos sagrados,
invertendo os seus ensinamentos de como penetrar nas superestruturas para
revelar suas motivações ocultas. Se nos fenômenos sagrados ocultam-se motivos
econômicos e sexo-agressivos é porque é possível perceber sutilmente neles o
brilho do sagrado camuflado.
Isso significa que a linguagem tradicional utilizada para expressar o
sagrado tornou-se obsoleta. Tal linguagem costuma afirmar que o sagrado é
isso ou aquilo, mas a alquimia cristã dissolveu o conteúdo sagrado em seu
movimento revelador. Enquanto o pensamento permanecer preso à linguagem
extensiva, deus jamais será uma presença real nesse mundo, porque essa
linguagem insiste em objetificar o que em essência é um movimento
lógico-dialético.
Para o sagrado ser real é necessário que se submeta às características
específicas que definem a atualidade em que vivemos. É preciso que ele preste
contas ao espaço-tempo particular no qual se manifesta, pois ele é nele mesmo
esse processo de desdobramento que espacializa e temporaliza sua pura
intensividade, e que simultaneamente se recolhe num ponto virtual onde
repousa em sua unidade eterna. Imaginar o sagrado como pura extensão é cair
na armadilha de expulsá-lo para um outro mundo, quando na verdade esse outro
mundo é a interioridade absoluta desse mesmo mundo em que vivemos.
O sagrado se realiza sacralizando o profano, o que implica sua
profanação. Se o esquecimento do sagrado é o resultado da dominação
racional-abstrata então é só a partir dela que ele pode ser recuperado. O que
não se realiza apenas retornando aos tempos passados onde ele era mais
explícito, mas também mantendo-nos firmemente ancorados ao secularismo que
nos rodeia. Uma ressacralização concreta do profano só ocorre no próprio
profano, na interiorização dele na sua mais profunda imanência de forma que
ele descubra a si-mesmo não só como partícula extensiva, mas como fluidez
processual.
Apesar da necessidade que o sagrado tem do profano para se manifestar
como tal, o modo de ser sagrado recebeu mais atenção e importância ao longo
da história do cristianismo. O prato da balança cristã pendeu para o lado da
divindade infinita e todas as qualidades pertencentes a ela tiveram um peso
bem maior na articulação da cultura. Foram privilegiados o espiritual, a
ordem, o masculino, o eterno, a essência, a unidade, a totalidade, o
infinito, a transcendência, o sentido, a verdade, a estabilidade, o antigo, o
gregário, a autoridade, a verticalidade. Neste segundo milênio após o
nascimento de cristo o segundo peixe do Éon cristão ascendeu na
roda do tempo e os pólos antes sombreados retornaram enantiodromicamente para
consciência. Nesses tempos pós-modernos celebram-se o corpo, o caos, o
feminino, o fugaz, a aparência, o múltiplo, o fragmentário, o finito, a
imanência, o não-sentido, a ficção, a instabilidade, o novo, o nomadismo, a
rebeldia, a horizontalidade, a dimensão profana da vida. Tudo que havia sido
varrido para debaixo do tapete tornou-se foco de atenção na pós-modernidade e
tudo que antes ocupava o centro da vida cultural foi marginalizado e expulso
para onde estavam antes aqueles que agora estão no centro. Na verdade a
própria relação centro-margem se inverteu e o centro foi marginalizado,
atacado, desconstruído, enquanto a margem foi centralizada tornando-se bem
mais interessante e fecunda nesses novos tempos. A noção de verdade essencial
ao opus metafísico foi desconstruída como uma metáfora entre ouras, um tropo
mestre cego as suas raízes ficcionais. Ao invés da verdade, jogos de
linguagem. Essa inversão enantiodrômica exerceu um contrabalanço necessário e
bem vindo, mas torna-se um problema quando passa a repetir a mesma atitude
que antes sofria, identificando-se com seu agressor em sua unilateralidade.
Diferente da rebelião adolescente pós-moderna que dança ao som da nova moda
zombando dos antigos saberes como velharias ultrapassadas, a negação dialética
é “puer et senex”, conjugando o novo e o antigo em sua diferença
interna.
A fascinação pós-moderna pelas infraestruturas da matéria, pelas formas
embrionárias de vida tem nos levado a assistir uma série de destruições de
estruturas tidas como solidamente consistentes. Assim como os antigos
experenciavam uma necessidade de anular periodicamente o mundo através de
algum ritual para poder renová-lo, essas destruições selvagens impulsionam a
criação de novos modos de vida não corrompidos pela mesquinhez do tempo e da
história.
Vivemos sob a sombra da arte pós-moderna e seu furor
anarco-iconoclástico de fragmentar, romper, quebrar e matar a si-mesma para
nesse trajeto reencontrar-se numa forma renovada. A vanguarda é posta em
xeque pela transvanguarda que vai além do além questionador da vanguarda,
tornando-se antiarte desestetizada, desdefinida, desmaterializada,
dissolvendo suas fronteiras ao fundir-se com uma vida que se torna cada vez
mais estetizada e dominada pelo design, enquanto que a arte pós-moderna
destrói a noção tradicional de beleza na busca pela estranheza presente nos
objetos mais familiares. Sempre na expectativa pelo novo, a sociedade
pós-moderna rejuvenesce através de técnicas cirúrgicas, não hesitando
destruir os valores tidos como mais duradouros em sua ansiedade pueril pela
novidade. Nenhuma época foi tão criativa e tão destrutiva ao mesmo tempo,
pois o retorno à inocência de um estado germinal eternamente nascente é a
contraparte da destruição atômica que reduz a vida as suas partículas mais
básicas.
Quando a palavra “criatividade” sai de cada lábio, vive-se na
expectativa de encontrar um gênio em cada canto. Essa conversa encobre a
impotência, é uma paródia perversa da criatividade. O culto da novidade olha
com desprezo para o que veio antes, simplesmente pelo fato de ter vindo
antes. Tudo tem de ser absolutamente novo, então, fora com o velho e
obsoleto! Ele explora o recurso inteligente de elevar o presente rebaixando o
passado. Ele anuncia o novo relevante com um milhão de manifestos decantando
a irrelevância do velho. Mas esses gritos de guerra incitantes da “avant
garde” são ambivalentes: junto com a originalidade verdadeira, estamos
igualmente propensos, talvez mais propensos, a ser imitadores. Todos têm ser
absolutamente “novos”, “diferentes”, “originais”, ou seja, todos têm de ser
absolutamente os mesmos. Ser novo torna-se o estereótipo supremo. Disso um
milhão de cópias são reproduzidas, todas idênticas em sua alardeada
“diferença” vazia. Além disso, essas cópias são profundamente uniformes,
porque todas elas não copiam absolutamente nada. Essa originalidade é uma
pobreza absoluta. Uma criatividade desarraigada e absolutizada reverte-se
novamente em mímesis destituída de qualquer original. A criação a
partir do nada cria a imagem do nada. Estranhamente o culto da novidade
(contradizendo a si mesmo – mas ele está pouco se importando com a
contradição) adota como sua única norma a máxima de que tudo tem de ser
novo. A norma é que não deve existir normas. Assim, ele gera uma transição
incessante de uma novidade para outra. Mas o paradoxo devastador é que nada
nunca muda. Pois sua norma básica é fundamentalmente um princípio da obsolescência.
O culto da novidade, por sua lógica autocontraditória, tem de tornar obsoleta
toda novidade. Ele, portanto, só é realmente possível como um culto da
decadência. Ele precisa camuflar sua impotência subjacente por meio da
mudança incessante de cenário, confundindo essa mudança de cenário com a
criação de um drama diferente28.
O pós-modernismo clama por uma abertura ao diferente, por um respeito
pelo o outro enquanto pura exterioridade, por uma hospitalidade ao
estrangeiro que vem de fora e é unilateralmente estranho. Mas por trás do
respeito à diferença enquanto pura diferença esconde-se a completa indiferença
ao outro, visto como puramente externo, estranho. Uma real hospitalidade
exige uma real presença onde a essência de cada um constitui-se enquanto o
evento do próprio encontro. Mas como no pós-moderno o conceito de essência
foi abolido, o que sobra é a indeterminância de um ser lacunar que cultiva
sua própria ausência. Esse traço de ser, esse resto indeterminado sempre
desconfiado de qualquer forma de identidade por estar imunizado a chamada
metafísica da presença, lida com a hospitalidade como um surfista de TV,
saltando metonimicamente de um canal para o outro tão logo se sinta
entediado, indiferentemente ausente àquilo que encontra, quando o que a
hospitalidade clama é a presença de uma essência completamente aberta ao
outro. Essa hospitalidade ao estranho é a própria essência da dialética, que
é uma exterioridade íntima, uma diferença que determina a essência daquilo
que diferencia29. “
NOTAS
1.ELIADE.M, Sagrado e Profano. São Paulo: Martins Fontes.1992.
2.ELIADE.M, ibid.
3.ELIADE.M, ibid.
4.ELIADE.M, ibid.
5.GIEGERICH.W, Matanças: O platonismo na psicologia e o elo
perdido com a realidade. Disponível em http://www.rubedo.psc.br/Artigos/matancas.html.
6.GIEGERICH.W, ibid.
7.GIEGERICH.W, Neurosis of Psychology. New
Orleans: Spring Journal Books, 2005.
8.ELIADE.M, ibid.
9.ELIADE.M, ibid.
10.CHEVALIER.J & GHEERBRANT.A, Dicionário de Símbolos. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2002.
11.ELIADE.M, ibid.
12.ELIADE.M, ibid.
13.GIEGERICH.W, Souls Logical Life. Frankfurt: Peter Lang, 2001.
14.ELIADE.M, Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins
Fontes.2002.
15.GARCIA-ROZA.L, Palavra e Verdade: na Filosofia Antiga e na
Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
16.ROHDEN.C, A Camuflagem do Sagrado no Mundo Moderno. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1998.
17.ELIADE.M, ibid.
18.TARNAS.R, Cosmos and Psyche. New York:
Plume, 2006.
19.DODDS.E.R, apud HILLMAN.J, Re-Imaginar la Psicología,
p.377. Madrid: Siruela, 1999.
20.ELIADE.M, Sagrado e Profano.
21.GIEGERICH.W, Technology and the Soul. New
Orleans: Spring Journal Books, 2007.
22.GIEGERICH.W, ibid. Por isso o diabo enquanto negação de deus é
reconhecido pelas patas animais que o liga a imanência terrena.
23.GIEGERICH.W, ibid.
24.JUNG.CG, Memórias,
Sonhos e Reflexões, p.221. Rio de
Janeiro: Editora Nova Foronteira.
25.GIEGERICH.W, Once More “The Stone which is
not a Stone”: Further Reflections on “not”. In: DOWNING.C (Ed.), Disturbances
in the Field: Essays in Honor of David L.Miller (pp.127-141). New Orleans: Spring Journal Books, 2006.
26.GIEGERICH.W, Technology and the Soul.
27.ELIADE.M, ibid, pp.165-166.
28.DESMOND.W, A Filosofia e seus Outros: Modos do Ser e do Pensar,
pp.176-177. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
29.O outro que constitui sua estranheza enquanto interioridade daquilo
de que se diferencia é uma das maiores problemáticas atuais, que aparece na
forma de enfermidades auto-imunes e doenças como aids e câncer, vírus computacionais,
terroristas ocultos na população local, espionagem industrial, problemas com
imigrantes, o caos intrínseco à organização do próprio sistema. Ver
GIEGERICH.W, O Terrorismo Islâmico. In: ZOJA.L,WILLIAM.D (Eds.), Manhã
de Setembro (pp.65-85). São Paulo: Axis Mundi, 2003.
Retirado daqui: http://www.rubedo.psc.br/inicio.htm
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Espaço oportunizado para aquele cuja a mente é inquieta e busca ir mais longe no conhecimento sem reservas de qualquer natureza. M. Aesculapius
sábado, janeiro 26, 2013
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