quarta-feira, abril 11, 2012


Eros e Psiqué

“A história revela a fantasia dos criadores da história e, por trás deles e em suas fantasias e padrões, encontram-se os arquétipos.”  James Hillman

          Os mitos são narrativas imortais, falam à nossa alma, e porque falam a linguagem da alma, emprestam desta o sentido de imortalidade que lhe é próprio, de um tempo sem tempo, sem lugar, ou melhor, de um tempo presente a todo o momento e espaço.
         O tempo da alma não é o presente, no entanto, está sempre conosco; não é o passado, porém, fala das coisas já acontecidas; não é futuro, mas fala mais do que qualquer outra linguagem a respeito do nosso destino. A linguagem da alma é fantástica, ligada ao inconsciente, é imaginativa, fantasiosa, paradoxal, holística, sagrada…
         Freud, quando “inventou” o inconsciente, isto é, quando trouxe para a ciência médica de fins de século dezenove e início de século vinte, a noção de que o homem era mais do que julgavam as vigentes ciências e filosofias que circulavam na época, foi buscar, nos mitos, as narrativas para “explicar” esse homem além da razão.
         Foi uma pena que na tentativa de se fazer ouvir e respeitar pela comunidade médica, Freud tenha adequado a alma ao mundo e não o contrário, feito do mundo um lugar mais adequado para a alma viver. Mas seria pedir demais ao primeiro homem que, dentro do meio acadêmico científico de sua época, ouviu pela primeira vez e deu voz à alma, para que outros homens daquele tempo iluminista a pudessem também ouvir e compreender.
        Além do mais, no afã de amoldar a psicanálise aos métodos redutivos da ciência, limitou a psique humana à explicação de um só mito: o mito de Édipo. Através de Édipo, Freud “explicou”, e bem, o homem, mas não explicou tudo.
        Hoje, impulsionados por crises generalizadas nas instituições, começamos a questionar se nossa cultura será a mesma daquela dos mitos fundadores descritos por Freud. Começamos a duvidar se temos todos por base a mesma horda patriarcal primeva e, urgidos por tantas reestruturações, notadamente as mudanças ocorridas na família nas últimas décadas, questionamos se o único deus a reinar no céu do nosso inconsciente será de fato para todo o sempre “Saturno”. Questionamos mais do que nunca a eternidade desse pai, tomado aqui como a metáfora exemplar do mundo patriarcal antigo, e se é legítimo o seu exclusivo acesso às fêmeas, negando aos demais machos da tribo o mesmo direito.  Questionamos como não mais legítima a proverbial insaciabilidade saturnina, de ora castrar e ora devorar os filhos – até por fim devorar a tribo inteira, já que todos por ali são seus filhos.
          Para Freud, é no levante destes filhos que, justificados pela tirania do pai tramam por seu assassinato, surge a culpa que origina a nossa cultura. Assim que é consumado o parricídio, os revoltosos e culpados filhos, ainda premidos pelo ato imperdoável, instauram a lei do pai, que é o interdito do incesto, e mais, para que o bárbaro crime não seja jamais esquecido, erigem um totem em homenagem à memória do pai. Totem que será o símbolo – fálico – da cultura que se viverá sob a égide do espírito do patriarca, agora para sempre onipresente.
         Há que se considerar que seja qual for a sociedade que se instaure a partir de mitos semelhantes, são mitos como estes que possibilitam a irmandade entre os homens, já que baseados na crença de terem um pai em comum. Mas é irônico que os filhos tenham assassinado o pai para terem acesso às antes mulheres proibidas, e que eles mesmos as proíbam assim que se  vejam livres do jugo paterno. São na verdade os filhos que instauram a lei do pai mais rigoroso, um pai assassinado mais temível que um pai vivo, por ser interno e imaginário – em outras palavras, inconsciente. E é esse pai internalizado o que lhes coíbe de fato e faz nascer, segundo Freud, toda e qualquer cultura humana.
          Pois bem, essa explicação de um único mundo patriarcal, por melhor que tenha sido elaborada e compreendida por Freud, já não nos basta para explicar o homem contemporâneo. Seja porque não vivemos mais no apogeu da ordem patriarcal descrita – muita coisa mudou no interior para o exterior do homem e vice-versa, em revoluções sociais e psicológicas que se alimentaram mutuamente – e seja também porque finalmente percebemos que somos ou podemos vir a ser mais do que apenas uma sociedade essencialmente masculina e dividida em castas.
          Hoje temos a clara noção de que podemos remontar ou inventar outras civilizações, fundar outros mitos, ter novos modos de nos relacionar com o mundo e com nossos semelhantes – como as mais harmônicas sociedades matrilineares, seriam uma alternativa, não tivessem elas também por base o mesmo modelo de castas do patriarcado, sendo apenas o seu avesso. O matriarcado e o patriarcado são exemplos de sociedades hierárquicas rígidas, que se apoiam e alternam no tempo, cada qual na sua impossibilidade de realizar a plenitude que a alma do mundo hoje parece clamar, quem sabe por uma nova era, nesse início já adentrado de terceiro milênio de uma cultura que agora se pretende global – um mundo sem fronteiras.
          Qual mito poderia então descrever ou revelar melhor o homem atual, esse mal recém-nascido homem contemporâneo?
          James Hillman levanta a possibilidade de ser a bonita e sofrida história de amor entre Eros e Psiqué.
         Nessa outra narrativa vamos encontrar não mais uma sociedade baseada em guerras e jogos políticos por controle e poder – pois seja pela lei do pai ou pela lei da mãe, é sempre a incompletude dos seres apartados o que domina a alma nas sociedades governadas por mitos genitores.
          Eros e Psiqué revelam então outra possibilidade, o mito duma outra identidade para o homem: não mais a do filho, do herói ou do guerreiro, mas a do homem amante, livre no gozo pleno de si mesmo, ainda sim irmão de todos os homens, mas mais envolvido com os problemas da fraternidade universal do que com as beligerâncias por poder.
          Quando os polos arquetípicos do gênero humano, masculino e feminino, param de guerrear entre si, de se anular e de subjugar um ao outro, é quando voltam os olhos um em direção ao outro e, lentamente, perfazem o caminho de volta, da aproximação e da gradativa consciência, crescente e respeitosa, de um para com o outro.
          É quando Eros descobre Psiqué adormecida e ferido na própria flecha se apaixona por ela, atraindo-a para o seu palácio no alto da montanha, desposando-a para logo em seguida a abandonar – pois o caminho da aproximação entre os polos arquetípicos nunca é reto, e muito raramente será saudável o ser, traça antes uma circumambulação, que é uma espécie de dança circular cuidadosa e que pode ser representado por mandalas, como na figura do início deste texto se quis representar; circumanbulação é, originalmente, dentro da psicologia, o movimento circular descrito por Carl Gustav Jung do progresso sinuoso e simultâneo, de avanços e de recuos, entre opostos arquetípicos em direção a uma integridade nuclear, e que pode ser entendido como sinônimo de construção do self.
          Voltando à fuga de Eros, conforme acontece na narrativa original desta lenda, com ela tem início os tormentos da alma, que vai até o inferno para reaver o amor perdido.
          Afinal, quem pode amar a alma? Só o Amor pode amar a alma.
          O amor é Eros, é espírito, animus em Jung, é a porção yang no taoísmo chinês e, desde os primeiros registros da história da nossa civilização está relacionado ao masculino, à vida, ao Sol, à objetividade, ao discernimento do espírito mesmo. Eros é a própria pulsão de vida em Freud.
         O amor é sempre único, não divisível, como Deus e o Pai são Um – e talvez por isso o feminino sempre procure no masculino a sua única e insubstituível face. O amor realmente nunca tem duas caras, mas avoluma-se diante da prodigalidade que lhe é característica.
          Por ascender ao alto, e por efetivamente morar nos picos mais altos possíveis, o espírito vê longe, tem a clareza do olhar.
         Nossa civilização está repleta de lições para dar e receber amor, cultivar e multiplicar o amor: o amor a Deus, à natureza, à mãe, ao irmão, ao companheiro. O amor é o bem mais precioso e desejável desse mundo, invariavelmente sinônimo de felicidade, beatitude, luz. Disciplinas espirituais para se chegar até Deus, que é amor, não faltam. E Eros mesmo, anseia subir a montanha para se reencontrar com o Pai – vide “Senex e Puer”, no primeiro capítulo de O Livro do Puer, de James Hillman.
          O amor é masculino, mas não pertence exclusivamente ao homem masculino, pertence antes ao conjunto humano, dotados todos os humanos desse “sopro” divino.
          Psiqué é alma, anima, ying, é a face sempre fugidia e sombria do feminino, ligada desde sempre à terra, ao corpo, ao pecado e à matéria. É a pulsão de morte em Freud. Misteriosa, é a força descendente, tradicionalmente negativa em nossa cultura, como nos delineia com muitas fartas imagens James Hillman, no seu famoso texto Picos e Vales, talvez o mais conhecido dentre todos os seus escritos.
          À alma então é dado habitar os vales mais profundos, as florestas mais densas, úmidas e tropicais; à alma é dado se esconder nos pântanos mais remotos e nas cavernas mais recônditas e escuras da terra; tanto se esconde a alma que nem ela sabe dela mesma, pouco conhece dos seus próprios encantos. As únicas belezas que a alma enxerga, por estar sempre metida em buracos, não distam mais do que dois palmos de distância. É nas coisas pequeninas e miúdas, nas visões interiores e obscuras, que está o que alma dá valor.
          Por ser tão fugidia e misteriosa, a alma pode assumir qualquer face, e o homem fica confuso e nunca sabe bem qual delas deve eleger, qual será a mais bela, a mais fascinante ou a mais terrível.
         A alma é a característica do feminino no humano, não exclusivamente de uma mulher feminina.
         Se as descrições dadas não preenchem plenamente o mito dos gêneros, não nos apeguemos totalmente a essas descrições, são no fundo apenas um breve relato de como a nossa civilização separou, identificou, e continua ainda separando e diferenciando os extremos arquetípicos do masculino-feminino, aqui representados nas figuras de Eros e Psiqué.
         Também não nos apeguemos a uma só relação entre os deuses. Sejamos flexíveis e francos também neste aspecto, pois contar a história dos mitos sob a perspectiva de uma ou outra relação representa quem sabe a escolha de como cada um conduz sua história, mas manter aberta a possibilidade para outras narrativas, abre espaço para novas possibilidades de relações entre os mitos, alargando assim as fronteiras que podem mudar destinos.
          No final todos os mitos contam uma única história, que é a história do homem sob a face da terra.
          E falando em termos absolutamente psicológicos, conforme é a proposta deste texto, o que se busca é, para todos os homens, independente da orientação sexual que tenham no mundo, o caminho da interioridade, da inteireza e da individuação. Não se trata, portanto, da busca de uma mulher por um homem real que contenha o seu “espírito” faltante – o “seu” animus, ou de um homem em busca de uma mulher de carne e osso que encarne sua “alma” – a “sua” anima. Muito menos se trata de uma incitação ou apologia à homossexualidade ou qualquer outra disposição erótica que porventura alguém tenha ou possa vir a ter.
         Fica esse alerta, que considero fundamental para evitar leituras equivocadas do mito dos amantes, muito embora projeções sejam um mecanismo natural e o primeiro e mais comum acontecimento psíquico ao entrarmos em contato com o “desconhecido”, com o “outro”, a questão eros-psique, do ponto de vista da Psicologia Arquetípica – ou imaginal – que é o ponto de vista adotado neste texto –, trata-se então mais da busca interior do indivíduo à procura do “seu” espírito e da “sua” alma, trata-se fundamentalmente da busca de um indivíduo por inteirar-se de si mesmo. E para concluir com essa questão espinhosa, uma última nota importante de esclarecimento, as últimas aspas foram empregadas para enfatizar que nós aqui estamos falando em arquétipos o tempo todo, portanto falando em forças que estão além do nosso particular controle e pertencem antes ao inconsciente coletivo – postulado da Psicologia Analítica – e não ao inconsciente pessoal – postulado da Psicanálise.
          Para James Hillman, o psicólogo junguiano fundador da psicologia imaginal, “viver” o mito Eros e Psiqué na contemporaneidade tem por função primordial resgatar o feminino da condição de inferioridade a qual a sociedade patriarcal abandonou o gênero ao longo de séculos de tirania masculina implacável – nos aspectos psicológicos, econômicos, políticos.
         Contar a história de Eros e Psiqué é então viver a história de uma coniunction bem sucedida no próprio indivíduo, já que para gerar um único ser equilibrado são necessários dois inteiros que tenham o mesmo valor um para o outro. Mas enquanto o feminino não for redimido, isto é, não propriamente a mulher na sociedade, e sim o feminino dentro de todos os homens – repetindo, na espécie humana independente da orientação sexual que cada um possa ter –, o produto será um monstro, gerado por uma coniunction realizada entre seres desiguais.
          Ainda para Hillman, o mito do homem moderno não deve esgotar-se em eros-psiqué, mas, à partir dele, desdobrar-se em outro indiviso – oportuno lembrar que a primeira filha que o casal mítico de amantes tiveram recebeu o nome de “Volúpia” –, por essa razão, ou não, o mito a ser resgatado após a união da alma com o espírito, do masculino com o feminino, é Dionísio, chamado “o inconjunto”, o fronteiriço, o bissexual.
          Mas esse é outro mito e tema para outra conversa.

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